🧐 🕵️ Primórdios da Problemística Policiária
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*** 20.ª Edição! 🧐 📖
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA
PORTUGUESA
POR: DOMINGOS CABRAL
(CONTINUAÇÃO)
CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”
***
“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 18
TINTA VERMELHA Havia
dois dias que uma chuva ininterrupta encharcava a cidade. O casario de Tarrassa
parecia amolecer, como cartão dentro d’agua.
Os grevistas reuniam-se, á meia-noite, no
subterrâneo do “Pára Pulg”. Um fedor a bafio e a peixe salgado empestava a
atmosfera…A anciedade emudecera os lábios e empalidecera as faces de toda aquela
gente. Os corações aceleravam os ritmos: os olhos, dilatavam-se, queimados de
febre e de óleo; e a lua de archote, presa a uma argola ferrugenta, agitada
pelo sopro do vento que vinha das frestas, ia ensanguentando os rostos que
riçava.
A neutralidade especuladora da Catalunha
desencadeara o temporal do sindicalismo vermelho…Lá, no norte, fuzilavam-se,
atolhados em lama, os soldados da Europa; em Espanha, a grande guerra das
classes v ivia nas guerrilhas das ruas escuras, nas caves húmidas e sinistras…
Os patrões, bruscamente enriquecidos, caíam pelos esconsos de Barcelona e de
Tarragona, trespassados pelas balas dos pistoleiros; os operarios, morriam, de
mãos algemadas, executados no misterio da noite, pelos fusis da Guardia… No ano
anterior duzentos industriais e sessenta trabalhadores tinham passado pelos
mármores da morgue…
A greve de Tarrassa durava há tres semanas.
O Sindicato unico enviara um orientador especialisado, um Hindemburga de
pistoleiros conferenciar com os grévistas. Era um moço esquálido, de mãos
estreitas, dentes de coupletista e voz rouca. Queria saber que atrito lhes
dificultava a vitoria. E “Noi de Campana”, velho agitador, explicou:
- “Todos os patrões estão amansados… O que
lhe pedimos não representa para eles grande sacrifício. Os exércitos da França
e os submarinos da Alemanha, compram, por qualquer preço, o que eles produzem…
Maior prejuízo lhes causam as fabricas fechadas… Eles cediam…
- ?
- A culpa de toda esta demora é de Eugenio
Sampére – o do “Centro Industrial”… Esse miserável é teimoso e cruel! … Prefere
perder toda a fortuna a ceder um palmo… É ele que envenena os outros patrões! É
ele que os excita contra nós! É ele que não deixa acabar a greve!
O emissário do Sindicato, cerrando os dentes
alvíssimos, praguejou:
- “Mára de Deus! E como se explica que vocês
não tinham picado de balas esse Sampére…
Calou-se o “Noi de Campanas”, buscando um
conselho nos olhos dos seus camaradas. E como todos se encolhessem sob o peso
da tragedia que sentiam avisinhar-se, perguntou:
- Vocês que dizem?
- Não há que hesitar! Berrou o embaixador do
Sindicato… Onde aparece esse homem?...
- Quem te pode informar bem são estes tres
camaradas que trabalham nas fábricas dele.
E apresentou-os:
- Manolo Montaner, carpinteiro… Paco
Vergasta, mecanico, e Pons, pintor…
Pons, o pintor, avançou um passo e explicou:
- Sei apenas que o patrão vive para as
bandas de Carrera de Pelayo. Não creio que ele, sabendo o perigo que corre,
venha á rua expôr-se a uma bala.
O “Noi de Campana” replicou:
- Não digas isso! Sampere é atrevido.
Sampére não tem medo nem do diabo…
E um outro, que estava proximo, lembrou-se:
- Os patrões tiveram hoje uma reunião no
Município. Deve acabar pêro das duas… Sampére assiste á reunião… Com certeza
regressa sósinho a casa… Era o momento de dar o golpe…
A ideia foi aplaudida – a turba saiu,
indiferente á chuva, silenciosa e macabra.
*
Postaram-se no parque próximo a “Carrera
Pelayo”. Quatro espias tinham-se refugiado nos portaes da rua, para os
prevenirem quando Sampére se aproximasse.
Esperaram até às quatro da manhã. De súbito
trilou um apito distante…
- É ele! Murmurou o “Noi de Campana”…
E o emissario do Sindicato, afastando-se
grupo, como um oficial que se prepara para comandar uma carga, indagou a meia
voz:
- Quem quer abater Sampére…
Ergueram-se muitos braços… Dezenas de
gritos, degenerados em sussurros prudentes, indicaram ao chefe que a labareda
do odio fazia crepitar todas aquelas almas… Era sinistro o espectaculo daqueles
rostos crispados pelo esforço de conter, num semi-silencio, a ânsia de berrar o
seu entusiasmo feroz… Dir-se-hia um exército de mudos e de paralíticos.
Assim, não! É impossível irem todos… Basta
tres…
E passada revista às suas fileiras, o
dirigente do Sindicato nomeou Montaner, o carpinteiro, Vergasta, o mecanico, e
Pons, o pintor…
- Não podemos regatear a estes camaradas,
operarios do tirano, o direito da dupla vingança pessoal e dos trabalhadores…
E os tres carrascos curvaram um pouco o
busto e, separadamente, seguiram para a Carrera de Pelayo.Quando o último saia
da vista dos grevistas, “Noi de Campana” observou:
- E se Sampéro consegue escapar das balas
destes camaradas?
- Não escapará então das nossas! Afirmou o
chefe sindicalista. Não vês que estamos a cercá-lo, cortando-lhe toda a
possibilidade de retirada?
*
Caíram no tempo, lentamente, perscrutaram
nas trevas. No silencio da madrugada – nem sequer se ouviam as respirações…
De subito, num tac-tac enervante,
estralejaram tres tiros. O silencio, que era opaco, tornou-se mais fundo ainda…
Dezenas de mãos se enclavinharam nas coronhas das pistolas…
- Morreu Sampére! - exclamou “Noi de
Campana”, num alvoroço alegre.
Caminharam uns minutos e viram, junto a um
portão do jardim, o corpo inanimado do patrão. Uma mancha de sangue alastrava
pelo rosto, indo empoçar sobre o passeio.
*
Os grévistas voltavam de
novo ao subterraneo. Era preciso orientarem-se sobre as medidas de defeza
contra a milícia e contra a guardia. O sindicalista de Barcelona, como perito,
botou discurso:
- Vocês dividam-se em pequenos grupos.
Entrem em casa com toda a cautela… Embora todos saibamos que os denunciantes
não escapam às nossas stars pode sempre haver um visinho palrador… E tratem já
de brunis os fatos… Se os bufos passarem revista às vossas roupas e as
encontrarem molhadas já sabem que…
A entrada brusca de um operario interrompeu
o pistoleiro perito… O recem-chegadovinha ofegante, sem chapeu, com as guedelhas
empapadas pela água as guedelhas empastadas pela água.
- O que foi, homem de Deus?
E o outro, quasi sem poder respirar,
explicou:
- Eu ficara de vigilância, no extremo da
Carrera do Pelayo… De súbito vejo o “cadáver” de Sampére erguer-se, olhar á sua
volta, e desatar a correr em direcção a uma “pareja” de “guardias” que vinha da
Rambla. E pela forma como lhes falava, nem ferido parecia estar… Ao princípio
nem acreditei no que estava vendo… Depois… depois, compreendi o perigo… e vim
preveni-los…
O chefe semi-cerrou as pálpebras e esteve,
durante alguns minutos, em profunda meditação. Por fim, inchando o tórax,
ordenou:
- “Noi de Campana”: vem comigo!
- Mas aonde? Inquiriu ele, amedrontado.
- Não faças perguntas. Obedece-me.
*
Com todas as cautelas
aproximaram-se do local onde tinham visto, caído, o corpo do industrial. Ainda
lá estava a mancha vermelha de sangue. O chefe sindicalista curvou-se, molhou
um lenço; foi com ele para a luz dum candieiro; levou-o às narinas, e os seus
labios crisparam-se num sorriso de apavorar:
- Fômos traídos, “Noi”!
- Não é possível!
- É! Um dos tres encarregados da execução, é
traidor!
- Como o sabes?
- “Isto” não é sangue; “isto” é tinta
vermelha… Avisado a tempo e sem poder fugir-nos, porque estava cercado, Sampére
bezuntou-se com tinta e deitou-se no chão. Os tiros foram disparados para o ar.
E nós tão ingenuos que nos convencemos de que ele estava morto.
- E qual dos tres seria o traidor?
- É o que resta averiguar – para nos
vingarmos.
*
Tres anos depois, no terraço dum café de
Barcelona, o “traidor” , terminada a narração da sua proeza, explicou-me:
- Como podia eu matar Sampére se tudo quanto
era – e sou - a ele o devo! Não bastara
desobedecer á ordem sindical. Era preciso salvá-lo das furias dos grevistas que
o cercavam. Afastei-me dos meus camaradas, abordei-o sósinho, expliquei-lhe a
situação, besuntei-o de tinta vermelha e disparei para o ar a pistola. Os meus
camaradas andaram mezes a fio, manivelando os miolos, a vêr se descobriam quem
era o “traidor”… E afinal, se tivessem raciocinado um pouco teriam chegado à
conclusão de que o “traidor” só podia ser...
Quem foi o traidor?
Basta reler uma vez a
descrição dos encarregados de executarem Sampére… Nessa descrição encontram a
chave do mistério.
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DOMINGOS CABRAL DA SILVA
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»»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««