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PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
POR: DOMINGOS CABRAL
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X” (CONTINUAÇÃO)
CONTOS MISTERIOSOS N.º 5
A REVOLTA DOS DEGREGADOS
Era preciso que Helena amasse o marido com dedicação e volúpia de sacrifício para o acompanhar à colónia penal de Bambiano.
Helena, que até então tinha vivido no esplendor calmo do Rio de Janeiro, casara-se havia oito meses, com Oscar da Cunha, um moço de vinte e cinco anos, que conquistara, pelo próprio esforço, as divisas de capitão do exército e a fama de bravura.
Mas era pobre, o capitão Oscar. Pobre e orgulhoso. Recusara-se a receber o dote que o sogro, milionário do Rio, queria oferecer á filha. E vai daí servir nas fileiras do exército para manter, com relativa comodidade, a mulher que desposara. E daí, também, o ter aceite, sem recalcitrar, aquela missão de ir dirigir e guardar a colónia penal de Bambiano, lá para as entranhas selváticas do Amazonas.
Bambiano não era, positivamente, um clima para temer. Chamavam-lhe “Bierritz” do tropico. Mas todo o temor que inquietava os nervos sensíveis e medrosos de Helena era os habitantes da colónia… A justiça seleccionava, entre os mais sanguinários heroes do banditismo do paiz, os degredados de Bambiano. E a ideia de que ia viver, cercada pela colónia penal, afligia a imaginação, até certo ponto ingénua, de Helena, como se a condenassem ao abandono no meio de uma floresta povoada de feras.
Havia já um ano que o capitão Oscar comandava a colónia penal de Bambiano e nítida era já a sua influência. Ele viera encontrar cerca de quatrocentos presos, “azes” da criminologia nacional guardados apenas por trinta soldados. E estes, conscientes da sua fraqueza, tinham ido transigindo até tal disciplina que não era para surpreender que um belo dia os condenados se armassem em juízes e verdugos dos seus vigilantes…
O capitão Oscar tivera de usar de severidades, por vezes cruéis: mas a onda ameaçadora que se alastrava por toda a colónia, minguou de novo. Era normal que os degredados o odiassem – mas todos se curvaram, acovardados, á sua passagem.
*
Não era divertida para Helena, aquela instância em Bambiano. Estava ela habituada á vida frívola e divertida da capital – e ali a sua convivência limitava-se às senhoras dos poucos oficiaes da colónia e às famílias dos comerciantes que negociavam com os caçadores das florestas vizinhas.
Apesar de tudo, o temor doentio que Helena sofrera por Bambiano, á distancia ainda da partida, não diminuira do que sentia agora, após um ano de residência. Pelo contrário, á medida que ia conhecendo a biografia dos degregados – mais se agravava a sua angústia nervosa. Este cometera quatro mortes; aquele chefiava bandoleiros; aqueloutro estripara uma criança de cinco anos…
Havia um, entre os quatrocentos condenados, que se sobrepunha, no seu medo, a toda a colónia: o “Quiruja”…
“Quiruja” era um mulato gigante, mui próximo parente, pela semelhança física, ao orangotango. Bandido desde os quinze anos, especializara-se no estrangulamento… As suas vítimas eram, principalmente, mulheres. Uma espécie de Jack – usando as garras em vez da força…
O seu comportamento na colónia era exemplar. Confessava o seu desejo de conseguir de Deus, o perdão para os seus crimes, para gostar no céu, o que já não lhe era permitido esperar na Terra. E o capitão Oscar, interessado pelo arrependimento do facínora, destinára-o a trabalhos especiaes, de seu ordenança ao seu serviço.
Helena, quando o via entrar em casa, especava-se, toda tremula, como se fosse a morte que lhe aparecesse… Bem podia o “Quiruja” abemolar a voz e suplicar que não tivesse medo dele… Bem podia o marido rir dos seus temores e afirmar que o “Quiruja” se tornára inofensivo.
-- Não posso… -- dizia ela. É superior às minhas forças… Às vezes surpreendo-o a fixar-me com um tal olhar, que penso que ele vai saltar sobre mim e estrangular-me.
*
Oscar fardou-se com a velocidade dum fragoli e tranquilisou a esposa.
-- Nada temas… Em eu lá chegando tudo abrandará… Guimpiro fica longe… Em todo o caso aí deixo uma pistola.
A solidão em que se quedara era uma suprema angústia para a medrosa Helena. Correu a fechar todas as portas, a apagar as luzes e começou a passear, num vai-vem inquieto, choramingando em silencio… Perto das duas da madrugada, uma brusca gritaria a despertou… Aproximando-se da janela assistiu a um espectáculo… Um grupo de degredados invadira uma casa visinha pertencente á família dum comerciante. Os dois únicos homens da casa estavam caídos de borco, golfando sangue… E as mulheres eram arrastadas pelos assaltantes que as tiravam pelos cabelos num berreiro de alienados em furia…
*
Continuava-se a ouvir o ladrar distante da fusilaria… Os guardas da colónia lutavam ainda… Contudo era evidente que alguns degredados, mais apressados, tinham conseguido furar as fileiras dos soldados e iniciaram assim, livremente, as proezas em Bambiano.
Os nervos de Helena já não podiam brilhar mais… Aqueles vinte minutos de sofrimentos, de angústia, de tortura muda – tinham-na cançado, como uma corrida de quilómetros. Assentou-se como pôde e deitou-se no leito como um suicida se lança às águas do mar.
E – fenómeno paradoxal: – o seu adormecer foi fácil e rápido… Um sono estreito, um sono sem sonho, se fechára sobre o seu espírito… Quanto tempo estivera neste estado quasi cataléptico? Não o sabia…
De súbito as suas pálpebras sentiram a necessidade de erguer-se… Uma fleixa de luar, riscando as trevas do quarto, vinha cocegar-lhe os olhos… E viu então que a porta se abria, mui lentamente, ao impulso de duas mãos. E que a fleixa de luar se dilatava pouco a pouco.
Teria chegado a sua última hora – ou a hora do maior enxovalho? E nesta última ideia convulsionou-a mais do que a primeira.
Recordou-se, como que por milagre, do que o marido lhe dissera, no momento da partida… A porta fechára-se: o luar desaparecera – e na negrura do quarto ouviam-se passos cautelosos…
Helena não hesitou. Estendeu o braço, tateou sobre o tampo da mesa de cabeceira e ao encontrar a pistola, disparou às cegas – até á última bala. Um grito de morte alfinetou o silêncio da madrugada.
*
Durante alguns segundos Helena não pôde mover-se. Depois mecanicamente saltou do leito e acendeu a luz. E então, ao reconhecer o intruso, caiu de joelhos, muda e pálida, como uma louca em transe de mística dôr. Ao seu lado jazia o cadáver de…
*
Quem podia ser o invasor do quarto de Helena? Quem foi que Helena matou? Que significa o gesto de terror que ela lançou?
* * * * *
NOTA: Foi mantida na transcrição deste Conto, a ortografia da época (1927)
»»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««
Trabalho notável do Domingos Cabral, o nosso Inspector Aranha, no decorrer do qual "desenterrou" surpresas enormes, ignoradas até então, mesmo por grandes investigadores do fenómeno policial português, como Joel Lima, recentemente falecido.
ResponderEliminarUm trabalho para ser lido e relido.
Muito bom, impecavelmente escrito🕵️♂️👍🦉
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