sábado, 31 de agosto de 2024

👣 Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa »»» PPPP »»» CORREIO POLICIAL - Domingos Cabral ☝ (Re)publicação - "CORREIO POLICIAL" de: 15.JAN.2021

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 *** 18.ª Edição! 🧐 📖

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

POR: DOMINGOS CABRAL

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

(CONTINUAÇÃO)

CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”

 

***

 

“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 16

O COLAR DAS TREZENTAS PÉROLAS     

A fantasia está para o nosso equilíbrio espiritual como a lagosta para o estômago do dispectivo. E a maior das agruras que a fantasia, quando estala o seu envolucro, derrama sobre a nossa alma, é, sem dúvida, a do desengano. O modelo mais acabado das desilusões que a fantasia nos proporciona a diário baseia-se na grafia mental dos entes, cuja existência e cujo nome nos invadem a imaginação. Há quanto tempo ouvia eu falar de S. Tomás S…, das suas aventuras galantes, do seu harém cosmopolita, do seu talento de bem trajar, de bem parecer, da sua ditadura na elegância e nas frases de espírito ? E fantasiava-o um pouco Eça, um pouco Brulé, com mistério e atitudes de “Vencido da Vida” e guarda-roupa importado de Regent Street.

   Mas ontem conheci-o… Que desengano! Um sobretudo, modesto, umas polainas de cor indefinida, um chapéu mole que já não se usa; uma dentadura postiça, abalada ao sopro de cada palavra; um monóculo de aro e fitilho negro; uma calva sem disfarce, desnudando-se a cada cumprimento; e para cúmulo, o desmazelo de uma barba branca de dois dias.

   Quem m’o indicou, adivinhando, através da careta que me crispára o rosto, a desilusão sofrida, apressou-se a dizer-me:

   - Não julgues tu que o Tomaz, quando andava na actividade elegante e brincava com os corações das bailarinas de S. Carlos, como os jongleurs brincam com os archotes incendiados, era assim, como tu acabas de o ver. Não! Este amolecimento, esta abdicação, este desprezo evidente por si próprio data de há pouco tempo. De 1919, se não estou em erro… A causa? Tens interesse em ouvir uma história em que a tua fantasia pode meter á vontade uns bruxedos ou feitiçarias? Então escuta:

   “Lembras-te de Wanda Kasensko, a bailarina russa que ia fazendo aos D. Juans de Lisboa o que Nero fez às casas de Roma? Wanda Kasensko veio até cá, como primeira figura de uma troupe celebre de bailados, chefiada pelo príncipe R… O seu físico acumulava tão inverosímeis perfeições de beleza que entontecia. Alta, majestosa; o corpo de Venus, com ambos os braços – e que braços; um triângulo facial que parecia feito de regua; uns olhos negros, indianos, umas pestanas doiradas, uma boca que era um comprimido de beijos; e para mais, inteligente, artista por inspiração divina; e aureolada por todas as lendas… Que tinha arruinado o rei das caixas de fósforos, nos Estados Unidos; que o kronpriz se quizera suicidar por sua causa; que um monarca asiatico lhe oferecera um fauteuil, na primeira fila, do seu palácio real… Enfim, o bastante para excitar a vaidade de todos os “portuguesinhos valentes”.

   “Ao princípio a sua corte foi numerosa. O camarim de S. Carlos estava sempre ao “grand complet”… Mas a frieza com que eram acolhidos provocou a deserção em massa dos seus admiradores. Nas últimas semanas da sua estadia em Portugal apenas isto dos pretendentes se conservavam, heroicamente firmas no seu posto: o rico fazendeiro de Cabo Verde, Marcial de Abreu, avelhacado e silencioso; o poeta, futurista e esfomeado, Albano Real, que corava na presença de Wanda, incapaz de dar á sua tenacidade o vigor de uma iniciativa e que passava todo o tempo a esconder os punhos sujíssimos da camisa; e o Tomaz, que tu acabas de conhecer…

   “Dos trez, o que tinha uma decidida vantagem sobre os rivaes, era Tomaz. Dotado de uma viveza de espírito superior ao poeta Albano; menos rico, mas muito menos sovina do que o roceiro Marcial – ele podia fazer capitular a alma-tanque da russa, insinuando-se, com a finura da sua inteligência e com a sedução dos seus presentes.

   “Porém, contra todas as profetisações, contra a manifesta fraqueza que Wanda exibia ante o seu assalto – a vitória retardava. Tomaz impacientava-se. Naquele bacarat amoroso arriscara a vaidade, a fama, e até um sentimento inédito de ternura. E um belo dia quis fazer a parada suprema. Vendeu uma quinta que possuía lá para o Douro e encomendou ao seu joalheiro de Paris um colar que, sendo digno da imperatriz das Russias – o fosse também da bailarina. Calcula tu o que seriam umas trezentas pérolas, das melhores que o Japão exporta, numa enfiada de quasi dois metros… Quarenta mil libras, creio que custou a jóia…

   “O colar teve honras de segredo de Estado. Veio de Paris a Lisboa, guardado por dois detectives. Restava agora teatralizar a entrega – e esta foi solenemente realizada, no camarim de Wanda, na presença de Marcial, de Albano e do Boris Kasensko, irmão, secretário e talvez explorador das venturas financeiras da bailarina. Quando o colar surgiu sobre a seda azul do estojo, como uma constelação de estrelas no céu límpido de Nice – Wanda cambaleou; os rivaes de Tomaz empalideceram e Boris corou até ao rubro.

   “O coração de Tomaz fez vários looping-the-llop” dentro do peito. Ante-gosava já a vitoria. E á saída, perguntou ao ouvido da bailarina:

   - “Cede finalmente á ceia que eu lhe esmolo em vão, há tantos mezes ? 

   - E ela, perturbada, como uma noiva, segredou-lhe:

   - Hoje, não! Amanhã…

   – Jura?

   – Juro! Como podia eu mentir a um homem como você?

   “Tomaz não dormiu aquela noite! Parecia um colegial a preparar-se para uma matinée do Coliseu… E quando, às oito horas, se burrufava com os últimos perfumes, o creado trouxe-lhe um embrulho e uma carta que o chassuer do Hotel de Inglaterra acabava de deixar. Rasgou o envelope e, aparvalhado, leu pouco mais ou menos o seguinte texto: “Tudo posso perdoar a um homem, menos o insulto de uma troça. Você acabaria talvez por conquistar-me, sem presentes. Mas a pretenção de me burlar, de me vexar com uma esperteza ridícula, afasta-o para sempre da minha vida. O colar que me ofereceu, dizendo que fôra preparado especialmente para mim, no melhor joalheiro da Rue de La Paix é uma falsificação grosseira. Deve ter custado, na sucursal do Krept em Lisboa, algumas dezenas de escudos apenas. Adeus para sempre da… - Wanda Kasensko.”

   “Tomaz deixou de pensar, de comer durante 24 horas e deixaria também de respirar se fosse possível a asfixia, por esquecimento. Essa apatia foi-lhe fatal. Quando despertou e quis reagir, já era tarde. Wanda abandonára a troupe sem dizer água-vai ao director e partira no Sud, para ponto desconhecido… Atontado, temendo enlouquecer, telegrafou para Paris; encarregou os amigos de processar os joalheiros. Os joalheiros provaram facilmente que o colar saíra perfeito das suas oficinas. Os detectives que tinham sido seus portadores estavam fora de toda a suspeita. Dirigiu-se então ao Lemos da Silva, o perito que apreciara o colar à sua chegada a Lisboa.

    - Não há dúvida! afirmou o Lemos. Este colar é uma imitação grosseira!

    - Mas tu garantiste-me o seu valor quando eu t’o trouxe aqui, há semanas.

    - Garanti – porque esse era… verdadeiro.

    - Nesse caso existem dois colares?

    - Absolutamente…

    «Era caso para perturbar o cérebro mais sólido. E Tomaz quis fazer averiguações por sua conta. Foi ao hotel de Wanda e subornou os empregados: no dia seguinte à oferta do colar a bailarina tinha sido visitada, nos seus aposentos, pelo roceiro Marcial, pelo irmão Bories e pelo poeta Albano. Tomaz começou a acreditar que houvera escamoteação e troca de colares nos próprios aposentos de Wanda, no dia da carta. Mas quem seria o escamoteador? O objectivo parecia-lhe claro. O objectivo fôra o roubo…

   “Mas este convencimento durou pouco. Uma manhã, o correio trouxe-lhe uma encomenda postal, registada. Abriu-a e ante os seus olhos pasmados surgiu um colar de pérolas. Nenhuma explicação o acompanhava. Correu com o estojo ao Lemos da Silva. Ele examinou as pérolas, limpou-as, mordeu-as:

   - Este colar é verdadeiro! - afirmou. Este colar é o primeiro que tu me mostraste.

   “O mistério complicou-se, adensou-se, tornou-se opaco. Provara-se que o móbil da troca dos colares não fôra o roubo – que móbil inspirara o escamoteador? E quem seria esse escamoteador? Tomaz só o soube um ano depois, quando a “Comedia” deu a conhecer a notícia do casamento de Wanda…

   - E quem casou com Wanda? – perguntei.

   - Com o escamoteador do colar.

   - E quem era o escamoteador do colar?

   - Era ………

 

Raciocinem, releiam as linhas em itálico, vejam a quem podia interessar a escamoteação do colar.

 

*  *  *  *  *

 

FALANDO DE REINALDO FERREIRA...

“Mais do que “Repórter”, foi Reinaldo Ferreira um admirável novelista de ficção como se nele se reunissem um Jack London, com todo o ímpeto das suas aventuras, e um Edgard Wallace com toda a técnica do surpreendente. As necessidades do dia a dia obrigavam o novelista – tão bom como os melhores do mundo - a envergar o “colete de forças do “repórter”.

A nossa indústria editorial era demasiado estreita para que nela coubesse e se expandisse livremente um escritor da sua envergadura.

No entanto, sempre que podia, o novelista dissimulado em repórter punha de parte o seu “travesti” e dava-nos novelas encantadoras como Mataram, o Duque, Preto e Branco, Cinco Mil Francos por Mês, em que, a par do imaginoso, brilhava o observador muito humano e até moralista. O seu forte, porém, eram os temas policiais e de aventuras. Um Edgar Wallace, um Van Dine, um Mayn Reid não desdenhariam assinar algumas das suas novelas. Se tivesse vivido em Inglaterra ou nos Estados Unidos teria morrido milionário (...) para nos dar (...) obras de maior equilíbrio e fôlego, para as quais não lhe faltavam recursos de inteligência.”

 

(Extracto do prefácio de Mário Domingues publicado no livro “As Memórias Extraordinárias do Major Calafaia, de Reinaldo Ferreira, editado em 1945 pela “Vida Mundial Editora, Lda.).

 


 

Último retrato de Reinaldo fotografado em Fevereiro de 1935, na redacção do X. Col IFC



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