domingo, 15 de setembro de 2024

👣 Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa »»» PPPP »»» CORREIO POLICIAL - Domingos Cabral ☝ (Re)publicação - "CORREIO POLICIAL" de: 22.JAN.2021

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 *** 19.ª Edição! 🧐 📖

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

POR: DOMINGOS CABRAL

  


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

(CONTINUAÇÃO)

CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”

 

***

 

“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 17

TSUN WANG, O ESPIÃO DE MACAU     

O comissario geral da polícia de Macau entrou no se gabinete às nove da manhã. Lamberto, um mestiço a quem o opio escanzelava, ameaçando descarná-lo por completo, avisou:

   - O sr. governador pediu para que, logo que chegasse, fosse ter com ele ao palácio.

   - Quando recebeste esse recado?

   - Á’s oito.

   - Não é possível ! O sr. governador nunca se levanta antes do meio-dia…

    O mestiço imobilizara-se, imaterial e transparente. As suas pálpebras semi-cerradas, ainda na sonolência das últimas fumaças, exprimia idiotia.

   O comissário, pressagiando más notícias, quedou-se meditativa, a vêr se encontrava explicação para aquela chamada matinal do governador. Depois, encolhendo os ombros, veio tomar o yedrow indígena que estava ao seu serviço. E tocando ao de leve com o stick no china que puxava o carro, ordenou:

   - Ao palácio do governador… E corre, porque tenho pressa…

 

*

   Nesse ano de 19!... era governador de Macau um coronel rubicundo, de esferico craneo e dotado de bigodaça, out’rora frizada a kaleer, e que depois, ao com tacto com a Asia, abatera as pontas hirtas, caindo em franchas que quasi chegavam ao queixo. O Comissario foi logo recebido e dum relance adivinhou que tempestuosa colera estava adensada sobre a sua cabeça. O pescoço do governador parecia estoirar, de inchado, a gola do casaco branco.

   - Senhor Comissario! - exclamou.- Isto não se faz… Não querendo sequer pensar que haja deshonestidade no seu acto – tenho de o castigar por desmazelo e pouca atenção ao cumprimento dos deveres do seu cargo.

   O comissario pestanejou, esbracejou – sem compreender a causa daquele

   - Posso, ao menos, saber do que sou acusado?

    Tentando cruzar os braços, que eram curtos, sobre o peito, que era vasto como uma andaluza, o governador fixou o comissario com um olhar, ao princípio relampagueante, e que depois foi, pouco a pouco, suavisando, até á calma:

   O comissário relembrou… Tsun-Wang, banqueiro chinês de grande cotação em Hong-Kong, alcunhado de “Tuniang” por ter a mão direita numa horrível mutilação, não passava de um espia, ao serviço dos inimigos da colónia portugueza. As suas amiudadas viajens a Macau traziam sempre a premeditação de uma proeza nefasta. Houvera uma denuncia, houvera provas suficientes para dar uma severa lição ao china: o Tsun-Wang, avisado a tempo de que o queriam prender, escamoteara-se, rápido, da casa onde se hospedara. E como era natural que ele pretendesse regressar a Hong-Kong, o mais rapidamente possível, fora redobrado o serviço de inspecção de passaportes, e para isso conferenciou o governador com o comissario.

  - Lembra-se então das instruções que lhe dei ante-ontem ? Pois não as soube cumprir… Estou já informado de que Tsun-Wang embarcou ontem á tarde, mui tranquilo, seguro de que ninguém o incomodaria…

   E o comissario, empalidecendo, perguntou:

   - Deixaram-no passar?

   - Pudera… Os seus subordinados e os meus de nada desconfiaram. Primeiro, poucos são os sinaes fisionómicos que o podem distinguir de qualquer outro china da sua categoria… Depois, segundo me informam, o espia  apresentou um salvo-conduto especial, da polícia, assinado por si…

   - É falso! – bradou o comissario. Eu não assinei nenhum salvo-conduto. Isso seria uma traição e eu sou um homem honrado.

   - Não duvido da sua honradez, comissario. Mas… há quanto tempo desembarcou o senhor em Macau?

   - Há uma semana…

   - Quando tomou conta do Comissariado?

   - Há tres dias…

   - Bem vê… Desconhece a imaginação subtil com que estes chinas tecem os seus ardis. Creio que não assinou, conscientemente, nenhum salvo-conduto – mas Tsun-Wang teve a ousadia de ir pessoalmente ao seu gabinete e conseguir que o senhor assinasse o documento sem dar por isso…

   - Mas é impossível, sr. governador ! Eu não sou cego: eu não estou louco – e garanto-lhe que não assinei o salvo-conduto de Tsun-Wang…

   - Desmentir a evidencia – é um disparate. Tenha calma e vamos vêr se fazemos luz neste misterio. Desde que tomou conta da polícia, quantos documentos teve de assinar?

   - No primeiro dia, limitei-me ao estudo do meu cargo. Só ontem trabalhei no expediente…

   - Recebeu visitas?

   - Sim… Quatro…

   - E o que queriam esses visitantes?

   - Um deles era europeu e vinha cumprimentar-me em nome da Câmara do Comercio. Os tres restantes eram chinezes. O primeiro, comandante de um barco de vela, um china franzino, com mãozorras desproporcionadas, mãozorras de marítimo luzitano, vinha solicitar a liberdade de um marinheiro, preso por uma insignificância…

   - E o senhor assinou a ordem de soltura?

   - Assinei! O segundo era um advogado chinez, vestindo o traje tradicional, todo de negro, de luvas negras, barrete negro, que vinha pedir-me licença para visitar os presos da última greve…

   - E o senhor assinou a licença?

   - Assinei! O terceiro era um china, europanisado, com unhas polidas pela manicure, como qualquer dandy parisiense, proprietário de um café, próximo do porto, encerrado há um mez, por mando do meu antecessor, em consequência de uma desordem qualquer e que vinha solicitar-me autorização para a sua reabertura…

   - E o senhor assinou a autorização?

   - Assinei! O governador, absolutamente amansado, aproximou-se do comissario, e poisando-lhe a mão sobro o ombro, disse-lhe:

   - Um desses tres chinezes, que lhe foram pedir documentos assinados por si, era Tsun-Wang. Não lhe posso perguntar traços fisionómicos porque, para os seus olhos pouco habituados a monotonia dos seus rostos chinos, todos lhe parecem iguaes. Tsun-Wang era homem de variados recursos… Tanto podia vestir-se de capitão da marinha mercante, como envergar a tôga negra e passar por advogado, como ainda europanisar-se e dizer-se proprietario de um café. O que não resta dúvida é que um deles obteve, graças a um truc, a sua assinatura. O informador da chegada a Hong-Kong de Tsun-Wang, telegrafou-me dizendo que o salvo-conduto estava assinado com o risco roxo… Compreendo qual foi o estratagema. Uma distracção sua – e o cavalheiro, que é hábil, como um prestidigitador, colou, sobre o documento, um impresso da polícia e uma folha de papel químico. E o senhor, pensando que assinava apenas um documento sem importância, estava rubricando também o passaporte do espia…

   O governador calou-se e de novo a colera ferveu no seu sangue… É que o comissário parecia distraído, ausente… Dir-se-hia até que um sorriso lhe aflorava aos lábios jovens.

  - E inacreditável, sr. comissário, a sua atitude… Está tão fresco como se não fosse nada consigo… E sorri… Não me houve ?

   - Perdão, sr. governador… Eu estava a reflectir sobre as suas próprias palavras, sobre a descrição que me fez de Tsun-Wang. E se involuntariamente me sorri, foi porque de súbito atinei com a chave do mistério…

- ?

- Sim, sr. governador, Tsun-Wang só podia ser …………………………

 

*  *  *  *  *

 

NOTA – Como habitualmente, foi mantida, nesta reprodução, a ortografia original.

 

*  *  *  *  *

 

FALANDO DE REINALDO FERREIRA...

Onde residem o acontecimento e o perigo, está Reinaldo Ferreira. Chegou mesmo antes, numa misteriosa presciência. E, quando os não há, o romancista inventa-os de toutes pièces, com tal verosimilhança, cópia de pormenores incisivos, testemunhos humanos, que eles se criam naturalmente e passam mesmo a existir, sob a sua pena impressionante, empolgante.

Aos vinte anos é considerado o primeiro repórter português, título que jamais ninguém lhe arrebatará, na vida como na morte!

Vale dez jornalistas, uma Redacção inteira, a trabalhar! Sozinho, em mangas de camisa, a gaforinha despenteada, com o eterno morrão de cigarro ao canto da boca, do qual nem sequer esparge a cinza porque não perde um segundo, no delírio de escrever — ele tanto faz, de ponta a ponta, um diário de quatro páginas como uma revista de trinta e duas, enchendo-as dos temas mais palpitantes e das imagens mais vibrantes!

E nem um cansaço, uma pausa, enlouquecido no paroxismo da alucinação criadora, como se aquilo que escreve fosse o seu próprio sangue inesgotável a viver, a circular, a resplandecer, vermelho e rutilante, fora do sistema arterial, num processo inconcebível e vivissecacção!

 Em metralhantes rajadas, colabora em todos os jornais. Aquela antena crepitante está sempre a emitir e ninguém sabe, nem ele próprio, aonde vai buscar tão diabólica resistência para suportar aquele intenso desgaste cerebral, porque a recuperação é imediata, ilógica, anormal.

A certa altura, porém, Reinaldo Ferreira encontra um formidável adversário. Um gigante enorme, duro, terrível, tolhe-lhe o passo. É o Repórter X.

Mas, quem é o Repórter X? Um homem de carne e osso? Um robot mecânico, na arte de escrever? Uma realização cibernética, que substitui o indivíduo, que pensa, labora por ele, batendo-o, contra-relógio, numa fulminante velocidade?

Nada disso! É ele próprio, Reinaldo Ferreira, pseudónimo criado por um lapso tipográfico no final de um seu artigo no jornal A Tarde, e que será até ao fim de tão febril e compulsiva existência — o seu inimigo n.º 1. O pseudónimo individualiza-se, humaniza-se e destrói Reinaldo. O ser que engendrou entra em circulação. É um nome civil. Uma autêntica personalidade. O super repórter que bate o progenitor ocasional em todos os combates do Jornalismo.

É a sua sombra, que nunca o deixará de perseguir na existência, até aos últimos passos, até à morte!”

 

(Extracto do prefácio de Artur Portela para o livro “Memórias de um Ex-Morfinómano”, publicado em 1976 pela editora Propaganda, Lda.).

 


DOMINGOS CABRAL DA SILVA

 


 »»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««  


 

 

 

1 comentário:

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