O inspector Lourenço levantou-se nesse dia
um pouco zonzo. Na noite anterior havia cometido alguns excessos quer na comida
quer na bebida.
-
Dias, não são dias! Pensava entre dentes.
Bem.
Entre dentes não se pensa, mas…
O
facto é que os copos tinham produzido um efeito que não lhe trazia grande
lucidez.
Ligou
a rádio, a telefonia que nunca dispensava e o noticiário lá ia arengando as
últimas:
“O
novo filme de Charlie Chaplin, Luzes da Ribalta espera-se que estreie em breve
…”
“Baptista
Pereira (não sei quê…) um recorde de permanência…”
“Houve
ontem um terramoto na Califórnia que provocou doze mortos…”
“Os
Jogos Olímpicos continuam e Zátopek é favorito às medalhas que aliás já ganhou
em jogos anteriores.”
Enquanto
escutava, iniciou as rotinas habituais: higiene, pequeno-almoço, etc…
O
telefone retiniu: - Lourenço?
Resmungou
entre dentes (agora já foi bem aplicado)
- quem havia de ser?
Ouviu
o recado urgente. Tinha de ir a Évora tratar de um caso de roubo. Continuou a
resmungar. Não gostava do nome que lhe tinham dado. Mania dos antigos de dar o
nome do santo do dia! Quarenta anos feitos ontem. Daí os copos a mais … bom,
vamos à vida.
De
Lisboa a Évora era viagem longa e cheia de peripécias naqueles tempos. O agente
Mértola foi quem conduziu a viatura policial. Apesar de tudo chegaram a tempo
de almoçar e pouco depois já interrogavam a presumível vítima do roubo.
Era
um sujeito estranho, de má catadura, semblante fechado e mal disposto, que
vivia num casarão isolado e rodeado de criadagem que, habitualmente lhe servia
também de guarda-costas ou seguranças como se queira entender.
Dedicava-se
ao comércio (legal) de diamantes. Tudo fiscalizado e de contas em dia.
Limitava-se a comprar e a vender.
Apurou-se
que era uma referência, um “expert” no assunto e depois de interrogado,
limitou-se a descrever o assalto de que tinha sido alvo.
Falou
então:
Ontem
à noite, estava a escolher pedras a fim de lhes fixar preço, quando dois homens
entraram subitamente no meu gabinete. Logo por azar tinha dado folga aos meus
criados mais decididos. Ficou apenas um velhote que já dormia e não deu por
nada.
Os
homens vinham com a cara tapada. Barretes negros esburacados no sítio dos olhos
e armados de caçadeiras. Confesso que me
assustei e não consegui reagir.
Levaram
todas as pedras que estavam, felizmente, no seguro por 320 contos de réis. No
entanto, depois de as analisar, considerei o seu valor em pelo menos 400.
Quando
saíram, espreitei pela janela e vi-os de roupas escuras dirigirem-se para um
automóvel azul-escuro, tipo americano, grande banheira, talvez Dodge ou
Pontiac. A noite estava estrelada e limpa e o luar ajudou-me a distinguir estes
pormenores.
Fim
de depoimento.
As
peritagens que foram mais tarde efectuadas, mostraram que havia marcas de dois
pares de botas de sola de borracha em ambas direcções do percurso entre os
sulcos de pneus acerca de cinquenta metros da casa e o gabinete. Os acessos de
terra batida ajudavam a imprimir vestígios quer das botas quer dos pneus.
O
rasto dos pneumáticos do referido automóvel, apesar de misturados com outros,
puderam ser identificados, mas perdiam-se ao entrar na estrada alcatroada.
Impossível saber para onde se dirigiam.