🧐🕵️ Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa...👣👣 🔍
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PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
(CONTINUAÇÃO)
CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”
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“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 14
O SEGREDO DO “LOIRO”À volta de Gastão de Moraes teceu-se a fama de uma falsa originalidade, com arrepios excêntricos, explorada com a sciencia de um reclamista Yankee para a conquista do êxito dos seus livros e das suas peças de teatro. Mas eu, que o tratei nos bastidores da existência, na intimidade do seu laboratório literário, posso desmentir essa lenda. A invulgaridade de Gastão não era superficial foi calculada. Viera assim ao mundo – como podia nascer manco ou estrábico… Satisfazia os seus caprichos estranhos, criando um ambiente extravagante e fazendo uma vida ímpar e diferente de todos os outros mortaes, como podia picar-se com morfina os aspirar o fumo do ópio.
Quando ele se instalou naquele chalet do Estoril, encimado de antenas que o ligavam aos concertos de Londres e às conferências científicas de Berlim, não pretendeu apenas a criação de uma residência digna das suas excentricidades; pretendeu também a fundação de um novo planeta. Na carta em que me convidava a visitá-lo, escrevia ele que o seu “astro” de S. João do Estoril estava tão separado da terra, como o podia estar Marte ou a Lua...
O seu gabinete de trabalho, decorado como uma scenografia do Chatelet era uma amálgama de museu, de arquivo, de ferro-velho e de atelier. Enjauladas nas estanterias havia bonecas de todos os paízes – e sobre as mapples, nitidamente cinematográficas, erguiam-se pirâmides de livros. Via-se uma frasqueira completa dentro de um aquarium seco, vis-à-vis com um gramofone e um Pathé-Baby. Sobre a mesa onde ele escrevia enfileiravam-se doze canetas de tinta permanente – de uma tinta amarela, única no mundo, destinada a cobrir as folhas negras onde Gastão redigia as suas novelas e as suas comédias.
Mas, o que sobretudo me irritou, naquela originalidade desequilibrava e berrante, foi o papagaio que se empoleirava num candieiro de pé, junto à sua secretária. Era um papagaio caduco, de bico rombo, com a carne a aparecer, nua e vermelha, por entre a penugem esfiada e descolorida. Gastão adivinhou o sentimento de repulsa que o bicho me provocara e sorrindo-se, disse:
- Tu és como os outros… Tu não gostas do pobre “Fantomas”… E afinal são os teus nervos que te enganam. O que sentes por ele não é antipatia: é o pressentimento do seu mistério secular.
Olhei, de revez, o papagaio. E o papagaio, inclinando a cabeça, olhou-me, vesgo e atento, com uma expressão de ironia, quasi humana. Depois, roufenho falou, como se se dirigisse a mim:
-Para que é que voltaste atraz? Esqueceste-te da espada? Ah! Assassino! Aqui d´El-Rei! Assassino!
E mais roufenho ainda, repetiu, com prolongamentos aflitivos:
- Assassino! Assassino!
Um arrepio de morte me arranhou o dorso. Soergui-me da cadeira; e se não fosse Gastão chocalhar uma gargalhada teria cometido o ridículo de fugir dali a sete pés.
- Que significa esta macabra lenga-lenga que tu ensinaste ao papagaio?
- Eu? Enganas-te, meu velho. O papagaio, quando veio parar às minhas mãos já a sabia há um século…
*
E Gastão de Moraes contou-me a história do seu “Fantomas”:
- Como tu sabes, minha mulher descende, em linha recta, do Coutinho da Silveira, que acompanhou D. João VI ao Brazil e que foi o autor de umas ingénuas memórias, que nunca chegaram a passar do manuscrito, sobre a vida do monarca portuguez nos seus domínios d´Além Atlântico. Coutinho da Silveira estava arruinado e perseguido pelos ódios da rainha Carlota Joaquina – e resolveu abandonar o seu senhor e dedicar-se ao comércio. O comércio, nessa altura, significava deitar-se à sombra da milagrosa árvore das patacas. Lá casou e lá morreu, deixando aos filhos uma arca a transbordar ouro. O meu sogro, bisneto do velho Coutinho da Silveira, liquidou a casa que possuía no Rio, e veio, em 1914, viver para a Europa com armas e bagagens… Misturado com os bahús, com as pratas e com os boiões de goiabada, trouxe este papagaio, que eu herdei, baptisando-o então de “Fantomas”…
Várias vezes perguntei ao meu sogro o que significava aquela lenga-lenga, a única que o animal aprendera na sua longa existência… “Para que é que voltaste atraz? Esqueceste-te da espada?... Ah! Assassino! Assassino” – e ele, encolhendo os ombros, sabia apenas explicar-me que o papagaio era velhíssimo, que devia ter pelo menos um século, que era uma relíquia da casa do Coutinho da Silveira, que o seu bisavô o comprara no aleiloamento que no Rio tinham feito dos móveis de uma actriz italiana, Aldelini, tragicamente assassinada nos princípios do século passado.
A história que provocava bocejos a meu sogro, interessou-me como me interessam todos os enigmas. Comecei a vasculhar os arquivos, até que encontrei, nas taes memórias manuscritas do velho Coutinho da Silveira referências, não ao papagaio mas a Aldelini.
Aldelini, uma veneziana de encantar, fora para o Brazil, acompanhando um holandez de aventura… Dizia-se actriz - mas poucas vezes exibiu os seus talentos. O holandez morreu de febres e ela, pouco depois, protegida pelos ricaços da época, abria salões faustuosos na capital da colónia. Cortesã sem escrúpulos nem pudor, mas hábil e ambiciosa, a sua existência deslizou suavemente. Mas um dia deu-lhe para se apaixonar por um jovem fidalgo portuguez, despertando os ciúmes de uma mulher mui poderosa e altamente colocada, de quem o autor não diz o nome mas que não é difícil adivinhá-lo… Essa mulher tinha o hábito de se desembaraçar das rivaes – e Aldalini foi assassinada por mandato dessa fêmea ciumenta e poderosa.
Na noite do crime ela recebeu secretamente quatro visitas de íntimos seus. D. Eurico da Cunha, sátiro em decadência, que se apoiava a duas muletas; o tenente Rosa, um oficial plebeu e pobretão; António Coelho, rico fazendeiro, que, como Mr. Jourdain, pagava generosamente a companhia dos fidalgos; e D. Pedro de Noronha, estudante, que andava em derriço romântico com a cortezã. Partiram os quatro um pouco antes da meia-noite – e na manhã seguinte Aldelini aparecia numa poça de sangue, com o peito trespassado.
A justiça da época tomou conta do caso… Os creados denunciaram os nomes dos quatro visitantes da véspera. Tinham saído juntos – e a honradez de um deles não permitia supor que o crime houvesse sido cometido de colaboração entre os quatro… Um só teria sido o assassino… Os creados garantiram que não tinha entrado ninguém mais, após a saída do grupo. E a influência da mandatária da proeza fez com que o silêncio cobrisse o crime, como a terra tinha coberto o cadáver de Aldelini.
“Dessa tragédia e desse enigma restou apenas uma testemunha: o papagaio. E o papagaio, com a sua extraordinária memória mecânica, de disco gramofónico, que vem, um século depois, elucidar-nos sobre um detalhe: que o assassino, sob um pretexto qualquer, voltou à sala onde estava Aldelini e a matou… E eu à força de ouvir o “Fantomas” familiarisei-me numa tal intimidade com esse mistério que, dentro do meu espírito, empreendi uma platónica averiguação detectivesca. E afinal, não era difícil. O assassino de Aldelini foi...”
Raciocinem; releiam as linhas ponteadas e encham o coupon:
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A PROPÓSITO DOS “PRIMÓRDIOS” E DO “REPÓRTER X”
"Os Primórdios" é um projecto já com vários anos destinado a, em livro, o "nascimento" entre nós da problemística policiária - que durante bastante tempo foi situado no ano de 1945, na revista "Detective", suplemento da Vida Mundial Ilustrada, marco temporal que, entretanto, regrediu graças à acção de pesquisa desenvolvida, especialmente, por dois grandes nomes do policiário: Dr. Joel Lima e João Artur Mamede (“Jartur"). De facto, este detectou, entretanto, uma Secção Policial publicada no periódico “Notícias Ilustrado”, em 1929, dirigida por L. Figueiredo, e o Dr. Joel Lima (estudioso da vida e obra de Reinaldo Ferreira) no seu livro “O Porto do Repórter X” divulgou que de Reinaldo Ferreira o “Primeiro de Janeiro” publicara, em 1927, os chamados “50 Contos Misteriosos” (na verdade 51, porque um foi considerado de “espécime”).
Alguns - poucos - questionaram se tal se podia integrar no conceito da “Problemística Policiária”, por serem designados por “contos”, a sua divulgação não ser feita através de uma secção assumida como tal, etc., mas rapidamente esses pruridos se desvaneceram, porque se tratava realmente de problemística policiária: enigmas de temática policial submetidos à decifração dos leitores, com as respostas a serem submetidas a pontuação e atribuição de prémios.
Por circunstâncias várias, a publicação dos “Primórdios” em livro tem sendo vindo a ser protelada - embora se vá concretizar em breve. Entretanto, surgiu a hipótese de, embora com algumas adaptações, a sua publicação se processar também nesta “Página” - o que actualmente acontece.
Mas, alguns esclarecimentos haverá, a propósito, que fazer. Assim:
1. Soluções
Alguns leitores têm manifestado estranheza por, publicados os “contos/enigmas”, não divulgarmos as respectivas soluções. Não o fazemos porquanto as mesmas, completas, também não o foram pelo “Janeiro” – apenas umas brevíssimas indicações de uma/duas linhas esclarecendo que o “culpado foi...”, sem qualquer fundamentação. E, embora tal missão pudesse ser agora por nós efectuada (até porque a maioria dos enigmas são de resolução muito simples...) entendemos não o dever fazer porque tal seria interferir na fidelidade que queremos manter na reprodução deste trabalho de Reinaldo Ferreira.
2. Ortografia
Fidelidade que também objetivámos com a manutenção da ortografia da época (1927), que, todavia, nos levantou várias dificuldades. É que Reinaldo Ferreira entregava na Redação do “Janeiro” os textos, manuscritos, dos “Contos, e como, na altura, estes ainda eram compostos, letra a letra, com caracteres de chumbo, e nem sempre pelos mesmos compositores, acontecia com frequência verificarem-se dúvidas de interpretação e saírem palavras grafadas de forma diversa, ausência de acentuações ou feitas de forma errada, etc... (Aliás, foi assim que surgiu o pseudónimo de “Repórter X”, resultante de um rabisco por si feito e interpretado daquela maneira pelo tipógrafo”).
3. O porquê da publicação aqui dos “50 Contos”...
...e não apenas dois ou três, para assinalar a data da sua divulgação inicial.
Bom, primeiro por que os “Contos” representam um marco importante na história da problemística policiária: o seu nascimento. Depois, por que foram escritos por um dos mais carismáticos nomes do jornalismo português de sempre — muito versátil: jornalista, repórter, cineasta, dramaturgo, etc. - o qual nunca será demais prestar manifestação do nosso apreço.
D. C.
»»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««
MUITO, MUITO BOM👍
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