🧐 🕵️ Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa...👣👣 🔍
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PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
(CONTINUAÇÃO)
CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”
***
“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 20
UMA FRASE APENAS...Eduardo não morria de amores por aquele velho relógio especado no patamar do palácio. As suas chegadas retardatárias ao lar materno coincidiam sempre com as campainhadas das horas. E Eduardo tinha a impressão que o velho relógio, inspirado por humana maldade, erguia a sua voz bem timbrada ainda, apesar dos anos, para anunciar a toda a família que o filho bohemio mais uma vez se esquecera do horário estabelecido.
- Oito horas! Já devem estar no fim do jantar.
Não subiu ao quarto… Dependurou no cabide da ante-camara o sobretudo e o chapéu; e depois de acamar, em frente do espelho, as poucas farripas da sua precoce calvice – entrou, suavemente, na sala…
A Dona Matilde, mãe de Eduardo, olhou-o por sobre os óculos e disse, com amargada ironia:
- Julguei que fazias como ontem…
- O que é que eu fiz ontem, mamã?
- O mesmo que fizeste hoje, ao almoço: o mesmo que fazes cinco dias por semana: não vires comer a casa, sem te importares com o que desgosta este abandono…
Eduardo soltou uma gargalhada. Á falta de argumentos – ria e beijava a mãe, com frenesim de creança pequena. Ele sabia, pela experiência, que rindo e beijando-a – todos os ralhos se transformavam em ternura.
- Então, não falas às tuas primas, Eduardo?
- Já lá vou… já lá vou…
Em redor da mesa que Dona Matilde presidia, sentavam-se quatro mocinhas, primas direitas de Eduardo: duas loiras e duas morenas. Eram as loiras: Nina, burgueza remediada, com extraordinaria vocação para bordados em escama de peixe, conseguira burlar a boa fé paternal, inventando, desde os dez anos, uma teatral anemia que a livrara das escolas e dos solfejos.
As morenas eram: Mariasinha, a menos venturosa de todas, órfã desde muito nova, obrigada a trabalhar, como dactilografa, para correspondência estrangeira num escritório alemão e Rosália que, apesar dos numerosos pianos desafinados sob os seus dedos furiosos, estava convencida que Deus a fadara para a arte musical.
Eduardo viu que as quatro primas tinham deixado em meio as garfadas de rostbeef, para o contemplarem, embevecidas e lamechas. Cumprimentou-as uma por uma, tendo para todas uma frase, um galanteio, uma graça. Depois, sentou-se e começou a engolir á pressa a sopa que esfriara no prato…
Eram oito horas e às nove tinha uma entrevista com Lúlú – a estrela do “Variedades”.
*
Findo o jantar, subiu ao quarto para vestir o smoking. Mas, antes de premir o interruptor da electricidade, as suas narinas dilataram-se, aspirando um intenso perfume a violeta que impregnava a escuridão.
-Bom! Hoje… tenho carta!
- Acendeu a luz – e viu logo, sobre o cristal da mesa de cabeceira, as lágrimas roxas de um ramo de violetas. Sob o ramo havia um minúsculo rectângulo de papel. Era a carta – a carta que, há uns tempos a essa parte, recebia invariavelmente, três vezes por semana. E como de costume, fazia-se acompanhar de flôres. De quem era a mão gentil que, com mistérios de aventura veneziana, introduzia, no seu quarto, aquela periódica e amorosa missiva? Ignorava-o!
Eduardo roçava já pelos trinta e cinco anos. Filho único dispondo de um rendimento fabuloso que lhe enchia, todos os mezes, a carteira – prodigalisára a mocidade, da forma mais descuidosa, alegre e comodista que era possível. Muito culto e dotado de uma inteligência aguçada, estilizara os seus prazeres; a sua bohemia; o seu egoísmo, tornando-os tão saborosos que não antevia sequer a possibilidade de se fatigar.
Um único atrito dificultava o prolongamento da sua felicidade extravagante: a mãe. Amavam-se com paixão, aqueles dois entes. E Dona Matilde, que se afligia sempre com a vida dispersa e aventurosa do filho – alarmava-se agora, ao vê-lo trintão e disposto a eternisar a sua bohemia, sem pensar na criação do lar, num futuro próximo ou distante.
A pobre senhora recrutara as quatro sobrinhas, trouxera-as para o palácio, na esperança que a sua meiga e virtuosa presença fizesse esquecer a Eduardo as tentações proibidas e acabasse por o prender, escolhendo uma das primas para mãe dos seus filhos… Mas os mezes rodavam atrás dos mezes – e Eduardo, brincando ou rindo, não se decidia por nenhuma, nem mesmo fixava com nitidez, a predilecção da sua simpatia...
Ultimamente aparecia-lhe no quarto, com extraordinária frequência, misteriosas cartas de amor... essas cartas tinham tido o condão de o interessar... Redigidas com uma sinceridade por vezes brilhante – palpitava nelas, gémeo ao perfume da violeta em que a namorada as impregnava, o pudor da virgem que ousa confessar alto o amor que lhe tritura a alma – mas mascarada de forma a não poder ser reconhecida.
Uma das quatro primas era, pela certa, a doce autora daquelas missivas. Mas qual? E este enigma preocupava tanto Eduardo que ele, sem se importar mais com a entrevista de Lúlú, se sentou à beira da cama predisposto a lêr e relêr as confissões da desconhecida amorosa…
*
A carta dizia assim:
“Eduardo:
É esta a última vez que te escrevo. Dei conta da minha loucura – e toda eu tremo, envergonhada, do que fiz – como se o facto de ser eu a contar-te o meu amor fosse um pecado mortal! E para quê teimar com o impossível? Talvez por ser impossível é que eu ouso segredar-te a verdade do que me vai n´alma. Se fosse realizável esta esperança – já tu terias adivinhado quem sou. Se não adivinhaste - é porque não me amas. E se não me amas – para que continuar nesta ilusão? “O amor não precisa de ser confessado. Os que estão destinados aos grandes amores – adivinham-se nem que os separe a imensidade dos mares!” E o poeta que escreveu esta verdade conhecia os segredos do amor.
Adeus para sempre”.
Eduardo sentiu que os olhos se humedeciam – como se aquele adeus fosse a despedida fatal da mulher que ele amasse também… Depois, ergueu-se, agitando-se, num vai-vem nervoso, pelo quarto. Não! O enigma não havia de ficar sem resolução. Descer à sala e interrogar as quatro primas seria uma grosseria inútil – e seria uma gaffe perigosa… Ela tinha razão… Era preciso adivinhar. Ele adivinharia!
Mas aquela frase que ela citara – não lhe era desconhecida. Já a lêra. E aonde? Aonde? Falava dum poeta. Sim… Fôra num livro de poeta que a conhecera, fazendo-o meditar… E esta reminiscência acalorou-o como uma esperança, como a certeza que encontrara a pista ambicionada.
*
Desceu à biblioteca e fechou-se por dentro. Fôra, entre aquelas estantes de mogno que Eduardo mergulhara no vasto oceano da literatura mundial… O livro, o poeta, a frase devia estar ali… Mas era difícil – muito difícil… Como descobrir entre os milhares de volumes que transbordavam das prateleiras, as poucas palavras que ele buscava?
O relógio holandez foi, pachorrentamente, anunciando os quartos, as meias horas, as horas… E às cinco da manhã, quando Eduardo mal emergia das ondas de papelada que o cercavam, deparou-se-lhe um volume, preciosamente encadernado. Teve um palpite. Folheou-o, ávido… E por fim, a meio de um capítulo, lá estava a frase “O amor não precisa ser confessado. Os que estão destinados aos grandes amores – adivinham-se nem que os separe a imensidade dos oceanos!”
Abraçou contra o peito o livro, como se ele fosse o cofre de um tesouro cubiçado. Depois, descastelando com os pés todas aquelas pirâmides dos volumes amontoados, foi estender-se numa otomana.
Releu então a lombada do livro. Estava marcada a ouro, com caracteres germânicos… O poeta chamava-se Franz Volbein – e o livro “Das Dame von Under Linden”. E na primeira página, havia, em alemão, uma nota: “O autor proíbe que se façam traduções desta obra.”
*
Meia hora depois, Eduardo deitava-se, resolvido a quebrar a sua egoísta existência de solteirão. Sim. Casar-se-hia… Ela vencia-o – e ela, a dôce e pudica anónima das cartas perfumadas com violeta, a leitora de Franz Volbein só podia ser...
Raciocinem, releiam a descrição das quatro primas de Eduardo e vejam qual era a única que podia escrever aquelas cartas amorosas.
* * * * *
Nota: Foi mantida, nesta reprodução, a ortografia original.
OBRAS DE REINALDO FERREIRA
(continuação do número anterior)
Memórias
Homens do Dia, Mulheres da Noite
Cemitério da Glória e da Saudade
Memórias de um ex-Morfinómano
História
A História da Ditadura Espanhola
Reportagem da Semana
Quem Matou D. Piedade?
O Segredo das Múmias de St. Michel
Mistérios à Volta dum Testamento
Teatro
E Digo Eu Cá Isto (Em colaboração com Lopes Vieira)
A Dama do Sud
1808
O Táxi nº 9297
O Homem que Mudou de Cor
Em Espanhol
Lo Que Fueran em la Vida Real los Heroes de Folletin
La Princesa que no Reia
El Palco nº 13
Memórias de un Legionário - 16 volumes
En la Rusia Roja y Hambrienta - 16 volumes
Los Rusos de mi Pension
El Hombre que Vivio 200 Años
La Muerte de Moreno
Los Reys em la Intimidade - 2 volumes
El Secreto de los Reys de Portugal
Aventuras Extraordinárias do Mosqueteiro do Ar
O Segredo da Cabeça de Cera
O Negociante de Sangue
O Segredo da Japonesa
A Guerra no Oriente
Série “As Sensacionais Aventuras de Jim Joyce”
(publicadas no Brasil)
O Mistério do Metropolitano
A Máquina da Morte
O Fonógrafo Revelador
O Telégrafo Vermelho
O Homem Imortal
O Doutor Satanás
O Crime da Mulher Loura
O Manequim Trágico
O Roubo do Banco Morgan
O Clube dos Regicidas
***
NOTA - Naturalmente que a lista das “Obras de Reinaldo Ferreira” (que iniciámos na passada semana e nesta continuámos) está longe de ser completa - porque muito difícil se oferece a missão de reunir hoje os títulos das dezenas de reportagens, contos e outros escritos por ele assinados há cerca de nove décadas, nas diversas publicações que editou.
DOMINGOS CABRAL DA SILVA |
»»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««
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