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segunda-feira, 15 de julho de 2024

👣 Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa »»» PPPP »»» CORREIO POLICIAL - Domingos Cabral ☝ (Re)publicação -- "CORREIO POLICIAL" de 25.DEZ.2020

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 *** 15.ª Edição! 🧐 📖

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

POR: DOMINGOS CABRAL

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

(CONTINUAÇÃO)

CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”

 

***

 

“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 13

O CADÁVER DO SR. BELMIRO

Arruda é uma vila que de vila apenas tem o nome, cedido pelo favoritismo político. Plantada a meio de um vale, insignificante é o regimento de vinhas que galga a montanha na curta distância de um quilómetro… Mas belas são essas uvas que o sol doira e transforma num colar sinuoso de diamantes, sob a renda verde da folhagem. Mas aquelas vinhas bem espremidas mal davam cinco pipas; e cinco pipas satisfariam o consumo da vila, que é de dois mil habitantes de vasto estômago – se não fosse as habilidades do sr. Belmiro. O sr. Belmiro foi, durante quinze anos, não direi o soberano industrial do vinho de Arruda, ao nível desses reis da indústria yanque, mas aproximava-se do principiado, pelas suas riquezas. Viajado e manhoso, o sr. Belmiro aproveitara-se da fama do vinho da sua terra para encher, com as cinco pipas da produção local e com outras tantas que de fora lhe chegavam, os porões dos vapores que levavam, para os Brazis, umas elegantes garrafas etiquetadas a doirado com o nome pomposo de “Vinho genuíno de Arruda”.

Graças a este ardil o sr. Belmiro amealhou alguns milhares de contos. Económico e solteiro, ninguém colaborara com ele, nos benefícios da fortuna. E quando, naquele mês de Agosto, subiu ao Supremo Tribunal de Deus, a dar contas das suas falsificações vinícolas, a justiça viu, com pasmo, que, o rico sr. Belmiro nem depois de morto quizera abandonar aos outros, os bens conquistados na terra. Dizia assim o testamento: «Quero ser enterrado com todas as minhas jóias – os anéis, os alfinetes de gravata, o relógio e a corrente de ouro e a abotoadura de brilhantes. Como não tenho parentes nem herdeiros directos, que o Estado faça da minha fortuna, orçada em quatro mil contos, o que entender”.

 

  *   *   *

Quando fui encarregado pelo chefe da redacção de fazer a reportagem do «cadáver do sr. Belmiro», vim de automóvel pela antiga estrada real. Muito antes de chegar a Arruda, surgiu, na curva do caminho, por detrás de um muro mui caiado, que reverberava ao sol do meio dia, uma minuscula floresta de cruzes. Era o cemitério que o município quizera colocar a uma distância de um quilómetro da vila.

 

*

- Quer ver a cova do sr. Belmiro? – perguntou-me o chauffeur, abrandando a marcha.

Disse que sim. Descemos á estrada. O portão do cemitério estava apenas encostado. Não se via um ser vivo, naquele campo de morte… Antigo devia ser porque, apesar de espaçoso, não havia muito terreno vago. Aqui e além, como chalets de bonecas, viam-se jazigos vaidosos, jazigos vem vestidos de mármore.

Mas o sr. Belmiro não tinha jazigo. Fora enterrado, na ante-véspera, num coval razo, entre dois ciprestes pigmeus. A terra tinha sido arrancada; e espreitando, vi o caixão violado, as táboas feridas à martelada, esburacadas; e lá no fundo, com as violetas sinistras a desfolhar-se na pele lívida – o corpo do sr. Belmiro, pançudo e ignóbil, e nusinho de todo, como se estivesse numa mesa de anatomia, à espera da bisbilhotice dos bisturis.

- Os malandros nem a camisa lhe pouparam! - contou-me o chauffeur. Levaram-lhe tudo – as jóias, as roupas, os sapatos…

- E quando foi?

- Logo na madrugada seguinte ao enterro. Entraram, abriram a cova, arrombaram o caixão e despiram o morto, sem temor a Deus nem respeito pelo sítio onde se encontravam… Sempre há gente de muito maus instintos!

- E quem foi o ladrão?

- Sei lá! O sr. Regedor prendeu Zéca Cortinho – o coveiro. Parece que, na noite da patifaria, teve a casa cheia de amigaços e que andou pela estrada até de manhã. A casa dele fica ali – mesmo em frente do cemitério…

E de manápula espetada indicou-me um casebre negro de sujidade, erguido numa elevação do terreno.

- Que o “Zéca” era um homem muito temente a Deus e sério, ninguém o nega. Há vinte anos que enterra mortos – e nunca tivemos razão de queixa… E há mais: o Zéca, apesar de habituado a lidar com os mortos nunca entrou de noite, no cemitério. Ele próprio confessava: - De dia, não me importo… Mas de noite… de noite entra-me uma tremura no corpo e na alma – e não posso!… não posso!»

Reflecti um pouco e indaguei:

- Era casado, o coveiro?

- Era! A mulher tem passado a manhã num choro pegado e jura e torna a jurar que o seu homem era incapaz de cometer tal vilania.

 

   *

Fui a casa do coveiro. A mulher, escanzelada e triste, recebeu-me como se recebe uma esperança, que desce milagrosamente do céu. E com um filho miúdo a chupar-lhe o seio magro, contou-me:

- O meu homem fazia anos e convidou uns amigos a beber um copinho de vinho doce… Vieram três. O Lindoso, que é alfaiate; o Romão, que é barbeiro e nosso vizinho porque vive mesminho aqui ao lado; e Roque, o carpinteiro que vive em Brocedas.

O último a chegar foi o Roque. Tinha tido tarefa em casa do sr. Doutor, o arranjo de umas capoeiras e até trazia a ferramenta do ofício. O meu Zéca mandou abrir três garrafinhas e a pândega esteve animada. Cantaram, tocaram viola e até eu bailei. O que estava mais macambuzio era o Lindoso, o alfaiate… - «Eu não sei como vocês podem viver aqui mesmo junto ao cemitério! – disse-me ele». E o meu homem respondeu: - «Não é por gosto, descanse. Sabe Deus o que me custa!» E o Romão, o barbeiro, disse também: «Moro neste sítio vai para doze anos - mas não há forma de acostumar-me. De noite nunca saio... Se não fossem os anos cá do Zéca, não tinha posto os pés na estrada.» Depois falou-se na morte do sr. Belmiro e das riquezas que ele levava para a cova, e o Roque, quasi se zangou: - «Que raio de conversa! Vocês, parecem que querem fazer-me medo.» E desatou a beber – que só à conta dele foi garrafa e meia.

Mas dali a pouco já ninguém pensava nos mortos. O bródio durou até às duas da manhã. O Lindoso, o alfaiate, tremia com a ideia de voltar à vila. A noite estava negra como breu. Não se via um palmo adiante do nariz… «O meu Zéca, ofereceu-se para acompanhá-lo até à Arruda, com a lanterna de acetilene…” «E o Romão? E o Roque?» - perguntou ele. «Eu não preciso!» - respondeu o carpinteiro. E desembrulhando a sacola da ferramenta mostrou uma lanterna eléctrica que comprára na feira de Junho… «Com esta “mánica” até pareço um automóvel!» «Quanto ao Romão, não era preciso acompanhá-lo porque, como já disse ao senhor, vive aqui ao lado…»

«Saíram os quatro. O Romão entrou logo em casa, o Roque lá foi para Brocedas, com a lanterna acesa – e o meu homem e mais o alfaiate encaminharam-se para a vila: À volta houve quem o visse – alguém que lhe queria mal – e como esta manhã apareceu o cadáver do sr. Belmiro nusinho de todo vá de acusar o meu Zéca! Mas eu juro-lhe, meu senhor, que o meu Zéca era incapaz de uma patifaria assim…»

E como a mulherzinha se preparasse para uma lamúria ruidosa que é a única exteriorização de dôr das fêmeas plebeias, interrompi-a para a sossegar:

- Deixe lá… O seu homem hoje mesmo virá para a rua… Não foi ele quem violou a cova do sr. Belmiro. Dos quatro, um só podia fazê-lo, é esse que eu irei denunciar é…

 

*   *   *   *   *

     

Quem foi que violou a cova do sr. Belmiro? O Lindoso, alfaiate? O Romão, barbeiro? O Roque, carpinteiro?

Raciocinem e resolvam o problema.

 

*   *   *   *   *

 




 »»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««


 

 

 

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