🧐 🕵️ Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa...👣👣 🔍
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PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
(CONTINUAÇÃO)
CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”
* * * * *
“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 25
POLICARPO DE AZEVEDOA invernia fora rigorosa – e a Serra do Marão, recoberta de neve, ora parecia o dorso dum monstro anti-diluviano, forrado de prata, ora se assemelhava a um enorme puding de creme, erguido na salva dos vales para tentar a guloseima dos anjos.
No alto da gralheira, os serranos dormiam; só no casebre do Palha, bruxeleava ainda o azeite das candeias.
Estavam desassossegados os anciães da Gralheira. O enigma vivo, daquele homem, preocupava-os como uma ameaça. Era preciso saber quem era, de onde vinha, porque se negava ao convívio dos outros homens – e se ocultava, lá mais para cima ainda, sabia Deus em que covil – como o lobo que fareja a vizinhança de caçadores.
Grande devia ter sido o crime que ele cometera - para assim proceder. Tinham no visto, pela primeira vez, mezes antes, os pés encafuados nos sócos, galgando com firmeza a serrania abrupta, com as mãozonas fechadas na escopeta. Passara sem corresponder ao «Deus o salve» da gente da Gralheira; e desaparecera sem deixar vestígio até que, uma semana mais tarde, descera de novo ao lugar, pagando com peças de caça, outros alimentos que necessitava. E estas visitas, repetiam-se com frequência – sempre pela calada da noite… A carranca do desconhecido não era para graças. Poucas eram as palavras que saiam dos seus lábios; e essas, pronunciava-as com tal altivez, que fazia curvar as espinhas menos flexíveis.
Intrigados pelo mistério, os serranos tentaram descobrir, ao menos, em que bloco de granito cavara ele a sua residência. Segui-lo era uma temeridade para a qual não sentiam coragem. Mas as pegadas deixadas sobre a neve podiam guiá-los até à casa do desconhecido.
Vã esperança! O desconhecido era matreiro e defendia ferozmente o seu enigma. No regresso calçava os sócos ao contrário – e não houvera forma de atinar na confusão das pegadas, que se cruzavam e não conduziam a lugar algum.
- Deve trazer morte de homem às costas! Profetizava o Palha. E é um risco para todos nós a sua vizinhança. Precisamos, custe o que custar, descobrir o seu refúgio… e como nenhum dos seus ouvintes parecesse disposto a acudir ao chamamento do ancião, este ofereceu os seus filhos:
- Não existem, nestas cercanias, moços mais valentes e destemidos! - afirmou, orgulhoso. José, Henrique e Sancho não tremem nem que se lhes apresente um dragão no caminho. Um deles irá descobrir o paradeiro do desconhecido.
*
Fora no mais alto píncaro da Gralheira, muralhado por blocos de granito, que Policarpo de Azevedo se instalara. Razão tinha ele ao pensar que o negro exercito de esbirros que o perseguia não iria ter com ele… Entrincheirado como estava facilmente se defenderia de quem ousasse ataca-lo. E ainda hoje, passados cento e sessenta anos, aquela fortaleza natural garante a mesma resistência, a quem nele se refugiar.
Policarpo de Azevedo, filho bastardo do Duque d’Aveiro, fora de todos os implicados na conjura contra el-rei D. José I – o único que escapara às garras do marquez. No patíbulo de Belem, palco do sangrento grand-guignol, os verdugos tiveram de concentrar-se em executa-lo – in-sfing. As proezas que Policarpo de Azevedo empreendera para se escoar em Lisboa, escapam às imaginações mais férteis… Existe, nessa aventura emocionante, heroismo, ousadia, argucia, agilidade e sobretudo, inteligência. Vivera em caves, saltara muros, transfigurara-se dezenas de vezes – uma delas, queimando o rosto com água forte – e atingiu, ao fim de longos mezes de agonia e angustia o cume da Gralheira onde ninguém viria busca-lo.
De dia e noite a escopeta não o largava. Os serranos eram curiosos; a curiosidade cegava a própria covardia; e Policarpo estava disposto a vender caro a sua liberdade.
Naquela madrugada uma extranha pezadez caíra sobre o seu sono. Os seus ouvidos, tão sensíveis, não o avisaram da aproximação do intruso. E quando o ruído dos sócos o despertaram, já o espia se afastava da casa de granito, pulando de fraga em fraga, em saltos que o assemelhavam à elasticidade de uma lebre.
Disparou a escopeta; e os seus olhos, que possuíam a agudeza do lince, julgaram ver o bisbilhoteiro, prostrado para sempre. Ele caíra, mas a ferida não era grave porque logo se ergueu… O chumbo devia ter-lhe atingido o braço direito porque, pendido este, ao longo do corpo, agitando apenas o esquerdo procurava o equilíbrio, nos seus acrobáticos pulos.
Policarpo compreendeu que era preferível a perseguição ao crime… As suas pernas não possuíam já a agilidade das do perseguido, que muito mais jovem devia ser. Mas chegara a tempo de agir e impor-lhe o silêncio…
*
Policarpo só o perdeu de vista nas proximidades da Gralheira. E quando entrou nas vielas negras do lugar, viu ainda uma luz a apagar-se. O espia ali devia ter entrado e assoprara a candeia para não deixar rasto… Mas não fora a tempo… Policarpo sabia já que era em casa dos «Palha» que ele devia ir bater…
A escopeta vibrou, por três vezes, ruidosas pancadas na grossa porta de carvalho. Por fim, a luz foi acesa de novo.
- Abram!
Obedeceram-lhe; e quando Policarpo entrou viu, em redor da mesa, os cinco anciães e os três filhos de Palha: o José, o Henrique e o Sancho. Os anciães não teriam ousado a caminhada até à casa de granito, naquela noite de invernia. Um dos três moços teria sido… Qual?
Em todos os rostos se refletia, numa crispada expressão, o terror que ia n’alma. Uma estranha covardia os paralisara a todos. Para tirar desse pânico o efeito preciso, que era o de impor o silencio, necessitava Policarpo agir com rapidez.
Fitou, um por um, os três jovens. Depois dirigindo-se ao mais velho, a José, exigiu:
- Traz para mim, para ao pé da porta, aquele cadeirão…
José, humildemente, correu a buscar o cadeirão pedido e erguendo-o veio coloca-lo onde o fugitivo mandara.
Policarpo dirigiu-se então ao mais novo – a Sancho, e ordenou-lhe:
- Agora tu vae pôr o cadeirão onde ele estava!
Extranharam todos aquela misteriosa contra ordem, mas Sancho não a discutiu. Pegou, com ambas as mãos no cadeirão e levou-o para o seu lugar primitivo. E mal cumprira a exigência, já Policarpo, dizia entre risadas:
- Julgavam que era fácil enganarem-me? Que tolos! Eu já sei quem foi o espia que quis saber onde era o meu refúgio. O espia só podia ser ... ... ...
* * * * *
Raciocinem! Releiam as linhas a itálico... e resolvam ...
(NOTA: Foi mantida na transcrição a grafia da época).
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EPISÓDIOS DA VIDA
DE REINALDO FERREIRA
"Em 1917, com dezanove anos, Reinaldo Ferreira arrepia os lisboetas com o crime, tão tenebroso quanto inexistente, da Rua Saraiva de Carvalho, que metia malfeitores encapuçados, um presumível cadáver e um vilão, apropriadamente designado como "o homem dos olhos tortos". A história veio a lume no '"Século", em forma de cartas enviadas "por um desconhecido", que se assinava Gil Goes. E a coisa atingiu tais proporções que o jornal achou prudente revelar o embuste. Mas o folhetim, finalmente assumido como ficção, prosseguiu até ao seu desenlace, e não tardou a transformar-se em livro! “O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho" - que Leitão de Barros tentou mesmo adaptar ao cinema com o título "O Homem dos Olhos Tortos”. Segundo Joel Lima, minucioso biógrafo do Repórter X e autor de um extenso prefácio à edição conjunta das suas histórias do "Dr. Duque, o Cartomante do Raciocínio" - uma espécie de Nero Wolfe "avant la lettre" -, a Cinemateca Nacional conserva ainda mil metros de película rodados para este abortado projecto?
***
NOTA sobre os “PRIMÓRDIOS”:
“Os Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa” é um projecto que temos há já algum tempo para corporizar em livro - que, por circunstâncias várias, não foi ainda possível editar. Entretanto surgiu a possibilidade de o divulgar, como pré-edição, nesta “Página” — o que vimos fazendo desde Setembro último. Porém, com uma alteração de estrutura entre as duas publicações, que ora nos propomos referir. Até porque os leitores desta Página estranharão que, sendo encimada pelo título “Primórdios da Problemística” só depois encontram contos/problemas de Reinaldo Ferreira - “Repórter X”. Estes, que de facto também integrarão o livro (na sua última parte, como anexo) e aqui beneficiam de prioridade por entendermos que, aqui, concitarão dos leitores mais interesse de que a história dos Primórdios.
Durante anos persistiu a convicção de que o início da problemística policiária
conhecera o seu início, na década de 40, nas páginas da Revista “Detective”. Entretanto, graças à notável colaboração de policiaristas como Dr. Joel Lima e João Artur Mamede ex-Presidente do extinto Clube de Literatura Policial e profundo conhecedor deste género literário, o primeiro, e responsável pelo Arquivo Histórico do Policiário Português, o segundo, veio a confirmar-se a existência de duas anteriores experiências de problemística policiária: em 1929, no “Notícias Ilustrado” suplemento do “Diário de Notícias”, com uma secção dirigida por L. Figueiredo, e antes ainda, em Fevereiro de 1927, no “Primeiro de Janeiro” com a publicação dos “50 Contos Misteriosos” (na verdade contos problemas, submetidos a concurso competitivo de decifração sob o título “O Leitor é Sherlock Holmes?”, da autoria do já então famoso Reinaldo Ferreira - “Repórter X”, que estamos agora a republicar.
Estavam assim, com mais rigor, fixados os “Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa”.
E porque entendemos que a publicação destes enigmas poderão concitar mais interesse aos leitores comuns deste jornal que a história dos Primórdios, decidimos assim que os desafios daquelas duas primeiras iniciativas - os de Reinaldo Ferreira e os de L. Figueiredo - que irão ocupar a última parte do livro - fossem primeiramente divulgados.
DOMINGOS CABRAL DA SILVA
»»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««
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