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terça-feira, 15 de abril de 2025

👣 Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa »»» PPPP »»» CORREIO POLICIAL - Domingos Cabral ☝ (Re)publicação - "CORREIO POLICIAL" de: 30.ABR.2021

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 *** 33.ª Edição! 🧐 📖

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

POR: DOMINGOS CABRAL

 

(CONTINUAÇÃO)

CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X” 


*  *  *  *  *

 

“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS”

N.º 33 –  A VIÚVA TRISTE

Como vê a minha casa é quasi uma relíquia… Quando vim para casa os vizinhos julgavam-me louco. Mas se as mulheres arrancam da própria carne os vestígios da velhice, artificializando-se com maquilhagens, com massagens e com roupas vistosas – porque razão os velhos casarões não hão-de fingir mocidade? Dois artistas amigos ajudaram-me a rejuvenescer essas paredes, a maquilhá-las, a abonecá-las…

“Dirá você porque diabo vim eu meter-me neste monstro de pedra, que cheira a convento e a repartição publica e que capricho me levou a gastar um dinheirão na metamorfose havendo por aí tanto palacete fresco, elegante, quadriculado ás exigências de comodidade de um homem moderno… Eu lhe explico…  É que eu sou um espectador entusiasta da vida. A vida é para mim o mais variado reportório de emoções que teatro algum possue… Mas eu não gosto de participar no espectaculo… Egoísta consciente - procuro assistir ás obras primas da Dona Vida – o mais comodamente instalado.

«Ora esta casa possue um camarote aberto para a cidade… Desse camarote – fumando tranquilamente o meu charuto, vejo, lá em baixo, a vida a representar só para mim… Vejo o formigueiro das multidões; a scenografia dos poentes; a apoteose dos arcos voltaicos, ao anoitecer…

“Venha comigo… Vê ? É este terraço… É enorme… E repare como eu o arranjei… Espere por um pouco… Ali são as trazeiras do manicómio – a tragedia da vida… Aquela louca toda vestida de negro e trança loira e olhos azues, húmidos de angustia silenciosa que nos espreita – é uma das artistas da companhia. Chamo-lhe Joana, não sei porquê… E vê, lá em baixo, aquela casinha que parece ter sido arrancada a uma montanha prateada da Suissa?  Vê a dama, morena, vestida de azul que, sentada junto à janela, folheia um livro, cheia de paz e doçura? Alcunhei-a, cronicamente, de D. Brites… É a comédia… E mais além, naquele jardim, próximo da praça, a dama rechonchuda e trigueira, quasi mulata, que traquina, vestida de Grenat, como um fedelho? Também tem um apodo: a Sangs Gine… É a farsa»

“Mas você tem pressa? Ah!  Ainda não fez o seu «conto misterioso» para o jornal. E falta-lhe assunto?  Pois vai ter um… Ouça-me…”

*     *     *     *     *

A heroína do meu conto conheci-a de longas tranças rematadas por laçarotes, com uns olhos azues, mui grandes, que pareciam ventosas ameaçando o amor de todos os homens que giravam já á volta da sua puberdade.

«Um dia casou. Foi um casamento de romance camiliano – casamento contra vontade, casamento de interesse paternal… Casou, entristeceu, os seus olhos enormes minguaram no seu primeiro poente de tristeza…

«Mas pouco tempo esteve encerrada nesse carcere… Um ano depois, o marido, castigado talvez pelos Deuses do Amor – morria, tuberculoso, num sanatório de montanha… Ei-la livre, ofuscando em crépons o clarão da sua carne rosada e fresca – e herdeira de enorme fortuna…

“Contudo, a dôr tinha-a estigmatizado para sempre… A liberdade e a riqueza não conseguiram agregar-lhe da alma os vestígios daquele ano de silenciosa tortura. Estavam então em moda as valsas e as operetas de Franz Lehar. Parodiando um título vienense, começaram a chamar-lhe a “Viuva Triste” …

“A Viuva Triste” foi cortejada, sitiada, perseguida pelos que cubiçando a sua beleza quasi original – cubiçavam também a sua fortuna. Entre os D. Juans, havia morenos e loiros, mas todos novos, todos pretensiosamente elegantes, todos preparados para a caçada ao seu coração…  E entre as visitas de casa – o meu pobre amigo Lúcio, gigante, pançudo com a velhice precoce a pincelar de branco os cabelos – era, sem duvida, o mais triste, o mais feio, o menos exibicionista de todos. E era ele, porém, o que a amava de amor.

“Convencera-se que não estavam guardadas para ele as chaves daquele paraizo. Resistiu, quanto pôde, por temor ao ridículo, ao desengano, á desilusão… Mas certo verão, num jardim qualquer, ao cair da tarde, chorando como uma creança, ajoelhando-se como um neófito – explicou à «Viuva Triste» os seus males e as suas tristezas…

E a «Viuva Triste», sorrindo-se pela primeira vez, desde que a tinham vendido, disse-lhe:

 «- Finalmente! Quebrou-se o bruxedo! Há quanto tempo eu aguardava essa confissão!  Se eu já o amava em solteira…

 

*   *   *   *   *

“Casou-se de novo a «Viuva Triste», que passou a ser a «Esposa Alegre»… Mas pouco a pouco quem entristecia era Lucio.  Uma vez veio ter comigo, num desespero, jurando que estava na vizinhança de uma tragedia… A mulher não era a mesma… Alguem se entrepunha entre os dois…  Uma força secreta os separava – quando era certo que ambos se amavam ainda…

«Tentei acalmá-lo e aproximei-me do seu lar – que era o lar da sogra - a fim de descobrir o segredo daquele mal estar... Varios indivíduos de familia da «ex-Viuva Triste», visitavam, com frequência, a casa…  Primos, visinhos, amigos… Entre estes estava um cavalheiro quarentão, com olhos coruscantes de hipnotizador de feira. Inteligente e até com fluidos de eloquência… Não hesitei na acusação… Era este o envenenador da felicidade conjugal de Lucio… O cínico aproveitava-se do seu prestígio, do seu magnético poder de sugestão e da própria fé cristã da esposa de Lúcio para a dominar até á escravatura da sua vontade…

«Mas o meu pobre Lúcio não teve coragem de o afastar do seu caminho… Preferiu apagar-se a si próprio na vida, como se apaga um carácter a giz da negra ardosia. Suicidou-se – deixando, como herança, uma carta em que denunciava á mulher a causa do tormento…

«E ela, a «Viuva Triste», fechada comigo na sala onde ainda havia vestígios de sangue, jurou-me, entre chôros, que odiava até ao Inferno aquele monstro que, sem a vencer na pureza do seu corpo - lhe algemava a alma com mágicos poderes… Só Lucio amara – e Lucio seria vingado.

«E cumpriu o seu juramento. O perturbador da sua vida, morria, duas horas depois, apunhalado pela «Viuva Triste»…

“A morte de Lucio libertára-a da hipnose serena em que tinha jazido, durante mezes…                                                

*     *     *     *     *

- «Espere lá… Você deve estar a pensar que nesta historia falta o mistério - o mistério que o seu conto exige… Pois bem, ei-lo… A «Viuva Triste» está ao alcance dos seus olhos… É uma das tres mulheres que eu contemplo deste camarote aberto sobre o palco da cidade…

 

*  * *   *    *

Releiam as palavras em itálico... vejam quem podia ser a “Viúva Triste”.

 

*  *  *  *  *

 


 

“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS”

N.º 34 –  OS PORTUGUEZES DO "PETIT-CACHÉ"

        A pensão “Le Petit-Caché” era, em 1919, o restaurante preferido da colónia portugueza em Bruxelas, situado a dois passos da Praça Broukére. A sua entrada nada tinha de esplendorosa e contudo, o “Petit-Caché”, como certos produtos farmacêuticos anunciados nos jornaes, gabava-se de que, cliente que lá entrasse uma vez, voltasse sempre e com grande frequência. A alquimia dos guizos e dos petiscos atraía e fixava para sempre os seus freguezes.

A «tertúlia» luzitana que se reunia todos os dias, no “Petit-Caché”, compunha-se de Marcial, de pupila azul, rosto saxónico, que ao sabor das ondas de aventura galante, fora parar um dia aos palcos londrinos e que em Bruxelas negociava; António da Fonseca, pequeno, fino, concavo, nervoso, de olhar iluminado, com mistérios a boiarem no fundo da íris, sócio de Marcial; Reis, um pouco esgaziado, por detraz dos óculos, eloquente e guloso – guarda-livros perito; e Bastos, comerciante, como os dois primeiros, moreno, de voz abaritonada, anéis a refulgirem nos dedos, olhar perscrutante e atreito a grandes entusiasmos.

Todas as manhãs, à hora do almoço, todas as tardes à hora do jantar, discutia-se a política de Portugal; os encantos de Portugal, os defeitos de Portugal; e até, garfando o «choucronte» e os «sauchissons» das Ardenes, se recordavam o salpicão, as ervilhas e as iscas de Portugal.

Suavisavam assim as saudades da pátria, evocando-a, discutindo-a, e até abocando-a severamente, tal e qual como estivessem no Porto ou em Lisboa…

Algumas vezes poucas, eles desciam das altitudes dos seus sonhos até às realidades do país onde se encontravam…

Todos eles gostavam da Bélgica… Mais ou menos tinham amealhado alguns fundos naquela terra… E embora já não podessem desagregar-se da sua maquinaria civilizada – Portugal era ainda para eles um escudo de nobreza, do qual pouco se utilizavam mas que muito exibiam.

- Bruxelas não está mal… - opinava Marcial, recém-chegado de Londres… Mas não chega a um só bairro de certas capitaes que eu conheço…

- Penso como tu… - intervinha Bastos… - Falta a esta terra aqueles encantos íntimos e singelos do nosso país…

- E não é só isso – retorquiu Fonseca. – Bruxelas tem para nós, todos os defeitos de inadaptação de estrangeiro e falta-lhes as grandiosidades de luz e de orgia de Paris ou de Berlim…

Reis então, acertando os óculos, protestou:

- Vocês falam assim porque vieram para a Bélgica há poucas semanas…  

- Eu já cá estou há seis mezes – comunicou Bastos.

- E és tu quem cá está há mais tempo – respondeu Reis. – Mas eu vivo na Bélgica, vae para cinco anos… Eu, tenho percorrido este país em todas as direcções – e posso afirmar-lhes que não existe nem paisagem mais sugestiva nem povo mais bondoso…

E Fonseca, espetando um cigarro na sua interminável boquilha, comentou:

- Isto és tu… que tens automóvel e passas a vida a passear…

 

                                               *   *   *   *   *

 

Eram onze horas da noite… Os portuguezes eram os únicos na pitoresca sala do “Petit-Caché”… E como tinham abusado de um respeitável vinho do Porto que Bastos trouxera e que datava de 1861, todos tinham revelado numa acalmia ensonada… E naquele silencio, um choro de creança, um choro que surgiu, de imprevisto, e que atroava os ares, num apelo desesperado.

Ao mesmo ímpeto, os portuguezes, os creados, os empregados de balcão e os da cozinha, correram ao átrio da entrada. E viram então, deitado sobre um degrau numa fofa cama feita com uma colcha amarela, um loiro miúdo de poucas semanas, talvez de dias, abaetado e bem coberto, que protestava, numa indignação ruidosa, contra o abandono.

Pegaram nele, com aquela falta de geito que caracteriza o sexo masculino, e fizeram prodígios por suavizar a cólera do neófito. E quando este se calou e fitou, com os seus olhitos inexpressivos, o rosto do creado que o erguera – a mesma ideia perpassou por todos os cérebros. 

De quem era o petiz?

 

*   *   *   *   *

Ninguem o sabia… Surgira ali abandonado, pela certa. Era um episodio folhetinesco dos muitos que os jornais registam a diário. Mas qual a razão por que a mãe escolhera aquele local do «Petit-Caché» para abandonar o filho?

O enigma não durou muito tempo. Uma carta, pregada com um alfinete, na colcha que encobria o pequeno exposto ia projectar um pouco de luz naquelas trevas.

Dizia assim:

         «Aos portuguezes do «Petit-Caché».

Entre vós existe um homem que nunca me confessou o nome – mas que me jurou amor até à morte… Com artes de sedutor embriagou-me… Dava comigo longos passeios, para me entontecer, para me perder… Esta creança que ele se nega a reconhecer – é o fruto da sua traição. Uma noite em que, envolvido pelos perfumes dos jardins de Namur, ele me fazia fumar o opio das suas mentiras… Maldição para ele – e piedade para o meu filho que baptizei com o nome de Raymond».  

*   *   *   *   *

Os portuguezes do “Petit-Caché” entreolharam-se. Qual dentre eles seria o sedutor?

*  *  *  *  *

Nota: Na transcricção destes dois contos/problemas foi mantida a grafia da época (1927).

 



DOMINGOS CABRAL DA SILVA

 »»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««  


 

 

A NOVIDADE: DOIS CONTOS POR SECÇÃO!

Esta 33.ª Edição de PPPP (CORREIO POLICIAL) está conforme o conteúdo da publicação original de 30 de Abril de 2021. Próximos Contos: CRIME OU SUICÍDIO e A NOITE QUE DUROU CEM HORAS.

1 comentário:

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