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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

👣 Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa »»» PPPP »»» CORREIO POLICIAL - Domingos Cabral ☝ (Re)publicação -- "CORREIO POLICIAL" de: 19.FEV.2021

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 *** 23.ª Edição! 🧐 📖

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

POR: DOMINGOS CABRAL

 

(CONTINUAÇÃO)

CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”

 

***

 


“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 21

O MARCO POSTAL N.º 8...   

    À esquina da rua Ivens e do largo da Biblioteca, a dois passos do Governo Civil, frente a um Club, plágio incolor dos célebres de Regente Street, de Londres, e da Gran Via, de Madrid, existia, ainda há pouco, um marco postal, dos mais antigos de Lisboa, visto que o registava um só algarismo.

     Era o marco nº 8.

     O seu envolucro de metal ameaçava ruína; a bala perdida de uma antiga revolta tinha-o ferido, sem que nenhum cirurgião serralheiro o consertasse – mas, de quando em vez, a Administração dos Correios, enternecida com a relíquia, mandava-o maquilhar. Ficava, durante uns mezes pimpão e berrante, todo pintado de vermelho… Mas a tinta já não pegava ao ferro ferrugento que os operários não raspavam antes da caracterisação – e mezes depois o velho marco postal entristecia, descolorido e sujo.

     A visinhança daquele grémio de pseudos-gentlemen, de madraços enriquecidos ou de fidalgos pobres, fizera do velho marco nº 8 o guardião de muito segredo amoroso. Conquistadores profissionaes, quasi todos os clubemen confiavam ao velho marco as cartas destinadas às suas amorosas.

     No inverno de 1917, numa manhã que, de enovoada não se libertara ainda das sombras da noite; ao sair da redacção de um jornal instalado no bairro, vi ajuntamento em redor do velho marco… Operários que iam para a faina e bohémios que recolhiam às casas tinham sido surpreendidos por uma densa fumarada que saia pela gretadura do marco. E visto assim, atravez a semi-opacidade do nevoeiro, o marco nº 8, atarracado e cilíndrico, parecia um anão que estivesse de charuto monstro na boca, a expelir o fumo já saboreado.

Acerquei-me do grupo e tentei, em vão, investigar o que se passava. Ninguém o sabia…

- É o marco que está a arder!

     Do Governo Civil vieram, correndo, alguns polícias, acompanhados por um agente da investigação, que estava de piquete. O primeiro pensamento foi o de chamar os bombeiros. Mas o detective Barros teve, por excepção, uma ideia sensata.

     -Antes de tudo salvemos a correspondência!

     Foi arrombada a fechadura e viu-se então, nas entranhas do marco, um pedaço de desperdício de limpeza de motores, aureolado de fogo. Um arame – seguramente o que ajudara a introduzir os desperdícios pelo bocal do marco, prendera às grades da cúpula a matéria incendiada, suspendendo-a e impedindo que a chama tocasse na correspondencia caída no fundo. O sabre de um polícia arrancou o desperdício e atirou-o para o passeio. Os tacões dos espectadores bastaram para o apagar. Um fedor intenso a gazolina subiu a todos os narizes curiosos que assistiam à scena, empestando-os. O agente Barros sobraçou as cartas e os postaes – e levou-os para o Governo Civil. E eu fui-lhe na peugada…

 

*

 

     Ora bem…

     Não podia firmar-se uma só dúvida sobre a causa daquele atentado incendiário de que fôra vítima o velho marco nº 8. Uma brincadeira de mau gosto de algum esturdio, que saísse, embriagado, dum cabaret? Um acto de simples malvadez? Não era crível… Um bohémio não anda a passear com gazolina nos bolsos e um malvado, só para saciar uma ânsia vandálica não prepara o seu crime com aquela meticulosidade.

     Tratava-se, evidentemente, de um atentado consciencioso, premeditado e com um objectivo grave. Para alcançar-se o sentido desse objectivo, a sua forma, a sua côr, não era necessário possuir-se a agudeza de génio. Os incendiários do velho marco só podiam acalentar uma pretenção: a de destruir uma carta que alguem introduzira pelo bocal; evitar que ela chegasse ao seu destino. Tinham visto ou tinham sido avisados que tal denúncia ou tal notícia fôra lançada no correio; sabiam que uma vez no marco nenhuma influência conseguiria cortar as azas ao minusculo rectângulo de papel; que ele seguiria a sua trajectória natural, passando do marco para o saco de coiro; do saco para as bancadas da Central, para voltar de novo ao saco do distribuidor, após a estigmatisação do carimbo – e dali para as mãos do destinatário. A única probabilidade de vencer a força imensa da carta seria queimá-la, antes que dela se apossassem as mãos do correio.

     Estabelecida a hipotese, faltava o exame à correspondência encontrada no marco. Só ela poderia iluminar aquele mistério. E eu ofereci-me para auxiliar o detective Barros nesse trabalho. 

 

*

 

     Espalhados pela mesa do agente estavam quarenta e dois postaes e três cartas. Os postaes que não tinham sido beijados pelo fogo, nenhum interesse ofereciam. Constavam quasi exclusivamente de comunicações familiares, a saber se «Fulano estava melhor da gripe»; a comunicar que «Beltrano não podia assistir a esta reunião ou áquele jantar» ou a «fazer votos por que Cicrano passasse um feliz dia d´anos…»

     A nossa atenção fixou-se nas três cartas. Todas elas estavam chamuscadas… Quasi que não foi preciso violá-las para conhecer o seu conteúdo.

     A primeira, encimada pelo nome do clube visinho e rematada por uma frase piegas («o teu Lili que muito te ama») era uma simples carta de namorado.

     A segunda, escrita em letra nervosa, era a denúncia anónima de um adultério. Dirigia-se a um titular e esgrimista muito conhecido, possuidor de numerosos nomes pomposos e de um palacete nas Avenidas Novas; e informava o marido infeliz que a esposa tinha como amante Simões C…, proprietário de uma garage próxima ao Chiado.

     A terceira, endereçada à direcção de um Banco e assinada pelo presidente de um “trust” comercial, continha outra denúncia: a que o gerente do Banco tinha desfalcado a caixa numa soma superior a trezentos mil escudos.

 

*

 

     Feito o exame à correspondência do marco nº 8, a nossa suspeita bifurcou-se apenas sobre estas duas últimas cartas. Ambas elas eram más mensageiras. Uma podia trazer a morte a dois amantes; a outra podia levar à Penitenciária um empregado infiel…

     Quando o sol conseguiu traspassar as cinzas do nevoeiro ainda o detective Barros, desgrenhando a guedelha, passeava à espera que lhe caísse do céu a resolução daquele horrível dilema. E quando eu me despedi, ele, contendo a minha mão que apertára a sua, disse-me:

     - Eu não quero cometer uma gaffe… Não quero arriscar-me a um fracasso. Só podia proceder se tivesse a certeza que ia deitar mão ao verdadeiro culpado. Mas não atino… Palavra! Não atino.

     Não atinava e nunca atinou. Eu tivera a sorte de ser inspirado pela verdade – mas nunca lh’o disse. Estava bem certo de que o incendiário do marco nº 8 era…

*   *   *   *   *

Raciocinem, releiam a descrição do atentado e descubram o incendiário.

*  *  *  *  *

Nota: Foi mantida, nesta transcrição, a grafia da época.

 


 

SOBRE REINALDO FERREIRA...

... e antecedendo a publicação nas suas páginas da novela "A Rua Sinistra", escreveu, na década de 40, a Revista "Colecção Impressão Digital" o seguinte:

 

A Rua Sinistra

Dentro do espírito que orientou a feitura desta antologia de autores policiais nacionais e estrangeiros não podia a "Colecção Impressão Digital” deixar de incluir em primeiro sugar o nome Reinaldo Ferreira, celebrizado pelo pseudónimo de "Repórter X”.

Pode dizer-se que, não contando com as tentativas esparsas de Eça, Ramalho e Camilo, Reinaldo Ferreira foi o iniciador da novela policial ligeira. Se Eça e Ramalho contribuíram neste género literário com um romance de fundo policial e se Camilo escreveu também um ou dois outros contos do mesmo carácter, Reinaldo manteve-se durante toda a sua vida literária dentro das novelas de acção policial e de mistério, popularizando-as largamente.

O seu espírito cintilante, com um poder imaginativo difícil de igualar produziu inúmeras novelas. Ainda, se, numa ou noutra, uma figura estrangeira aparecia, o Repórter X procurava, contudo, que o ambiente onde decorria a acção fosse português assim como portugueses eram a grande maioria dos seus personagens.

Pela saudade que o seu espírito deixou, pela facilidade com que escrevia os enfabulados que eram fruto da sua inteligência dinâmica, o nome de Reinaldo Ferreira, deve aparecer nesta colecção a par dos nomes mundialmente conhecidos de Agatha Christie, Ellery Queen, etc.

É esta a melhor homenagem que “Colecção Impressão Digital” lhe pode prestar.

Os editores

 

DOMINGOS CABRAL DA SILVA

 »»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««  


 

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