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domingo, 30 de junho de 2024

👣 Primórdios da Problemística Policiária Portuguesa »»» PPPP »»» CORREIO POLICIAL - Domingos Cabral ☝ (Re)publicação -- "CORREIO POLICIAL" de 18.DEZ.2020

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 *** 14.ª Edição! 🧐 📖

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

POR: DOMINGOS CABRAL

 


PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA

(CONTINUAÇÃO)

CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”

 

***

 

“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 12

O BARBEIRO DO PRÍNCIPE

     O pincel de Staam a esparramar o sabão nas faces do príncipe real tinha as mesmas flexibilidades do de um artista que estivesse evocando, sobre a tela, uma imaculada paisagem de neve.

     - Vossa Alteza, está preparado? Indagou no momento em que assentava o fio da navalha numa tábua de cabo prateado.

     E Sua Alteza respondeu, monossilábico:

     - Estou!

     -Alguma exposição industrial para visitar?

     -Não!

    -O governo desistiu das viagens de Vossa Alteza às colónias?

    -Não!

     -Os papasinhos de Vossa Alteza falaram-lhe mais uma vez da urgência que existe em escolher noiva?

     -Oh! Não!

     E o barbeiro sorriu-se e emudeceu. Um pouco inclinado, mas sem perder a firmeza dos seus gestos cheios de altivez, ia deslizando a lâmina por sobre o floco alvíssimo de escuma. A navalha conduzida pelos seus dedos de artista tinha a leveza de uma pena que cocegasse as principescas faces do cliente. Havia quarenta anos que Staam barbeava os príncipes ou os reis do seu paiz. O avô do actual herdeiro chamava-lhe o “Montepio dos Segredos” quando, ainda herdeiro do trono, se sentava naquela cadeira, de volta das suas orgias bohemicas… Fôra Staam quem dera, ao actual monarca e ao filho, essa emoção da primeira razura, que é, para os moços em plena puberdade, como que o certificado dos direitos máximos do seu sexo…

Ria-se Staam dos ministros, dos cortezãos; ria-se, sobretudo, sempre que ouvia falar de segredos de Estado. Segredos de Estado, para ele? Ora adeus… Se ele quisesse acabaria com as lendas, com os embustes, com as charadas… Bastaria revelar o que, em quarenta anos de serviço, escutara aos reis e aos príncipes.

   Blindado, como os bufões medievais, com a segurança de que a sua indiscrição jamais seria castigada, insistiu:

     -Mas porque é que está assim preocupado, Alteza?

     E o príncipe, sob a influência da tradição que lhe impunha uma confiança ilimitada ao barbeiro do palácio, desabafou:

    - Tu nunca ouviste falar das irmãs Tudesc?

     - As célebres modistas parisienses?

     - Modistas de Paris, da Rue de la Paix, são de facto – mas ambas – a Gina e a Carmen, nasceram em Bucarest, que é como se dissesse que são rumaicas.

Gina e Carmen, como sabes, vestem as mais suntuosas damas da nossa corte. Todos os anos, umas semanas antes da abertura da estação, tomam o expresso e vêem instalar-se no primeiro andar do Sawya-Hotel, seguidas de moços, ajojadas com as suas últimas criações e ladeadas por um elenco de manequins de carne e osso que fazem aguar os mais pintados cidadãos. Rara é a estação que o seu pessoal feminino não deserta entusiasmado pelas promessas de casamento de alguns banqueiros bajojos – e mesmo de alguns fidalgos caquéticos… As irmãs Tudesc, a Gina e a Carmen, recebem-me, pela calada da noite. Eu entro por uma porta secreta das traseiras do hotel e costumo passar umas horas agradáveis, cercado pelas girls da comédia da “Moda”. Este ano tardei a visita – e encontrei-as desfalcadas já no seu selecionadíssimo elenco de modelos. Apenas lhes ficara uma pobre rapariga, magrita, morena, insignificante, com o olhar triste das gheisas do Japão – e que, segundo me informara, é de nacionalidade portugueza.

     “Ora, este ano, talvez por se encontrarem sós, as duas rumaicas, a Gina e a Carmen, começaram a fazer-me a corte. Sim, meu velho: fazer a corte é o termo exacto! Deu-lhes para se apaixonarem por mim. Mas de que maneira! Tragicamente, com chôros, com berreiros, com cenas de ciúmes entre ambas, com ameaças de romperem a sociedade comercial – e enviando-me, diariamente, declarações que são verdadeiras bíblias. Infastiei-me – e decidi nunca mais pôr os pés no Sawya-Hotel enquanto elas lá estivessem…

     “Pois bem: ontem, um dos meus íntimos, trouxe-me a informação que provocou este mal estar que tu, com o teu fluido mágico, adivinhaste em mim. A informação é que, no Sawya-Hotel, nos appartements ocupados pelas irmãs Tudesc, houve uma mulher que tentou suicidar-se ingerindo uma dose fantástica de pantapou… Essa mulher, que foi salva graças à rápida intervenção do médico, confessou ao padre que acudiu ao seu apelo que queria morrer por que se apaixonara sem esperança, pelo príncipe herdeiro…

     “Esta notícia impressionou-me, comoveu-me… Mandei chamar o médico, para que me revelasse o nome da minha loucamente apaixonada. “Nada posso dizer-lhe, Alteza – respondeu o médico. A minha cliente impôs-me sigilo – e eu nunca violei um segredo clínico”. Chamei o sacerdote – e obtive a mesma negativa: “É um segredo de confissão, Alteza!

     “Quis ir pessoalmente investigar o caso. Fui recebido em alvoroço… Gina, Carmen e a portuguezinha estavam igualmente pálidas, igualmente olheirentas, com três espelhos reflectindo a mesma imagem. Quando lhes perguntei qual das duas cometera a loucura de se envenenar, negaram-se a confessá-lo… Depois Gina, num instante que esteve só comigo, segredou-me:

«- Fui eu, príncipe, fui eu! Se me vejo desprezada neste grande amor!” E no momento de despedir-me, a outra Tudec, a Carmen, aproveitando a ausência da irmã, cochichou-me à pressa: “-Fui eu, Alteza, fui eu! Para que me serve a vida se ela é a negação do amor que engendrou no meu peito?”

     O príncipe real deixou que o barbeiro lhe escanhoasse o queixo e inquiriu depois: - Tenho ou não tenho motivos para estar preocupado? Uma mulher que quer suicidar-se por amor de mim – é por que me ama… Se ela me ama com tal ardência, merece que eu a distinga. Mas qual das duas será? Eis a dúvida que me atormenta!

     Staam borrifou a cabeça do seu augusto amo com uma rosada loção de  Lubin: sorriu-se de novo, num crispar de lábios que espelhava convencimento de uma superioridade; e garfando os dedos por entre a guedelha do príncipe, murmurou:

     - Vossa Alteza sabe que uma mulher, no appartement das Tudesc, no Sawya-Hotel, tentou suicidar-se por amor de si!

     -Sei!

     - Mas ignora quem foi!

     - Já se vê que ignoro…

     E o barbeiro então filosofou:

     - Essas duas modistas são rumaicas, o que quer dizer pouco propensas a uma paixão séria… Estão despaísadas; fixaram-se em Paris, triunfaram em Paris – o que equivale a dizer que são mulheres vaidosas e práticas… Ora o suicídio por amor costuma ser obra de sentimentos muito opostos. Além disso, o detalhe da suicida ter exigido ao médico e ao padre, segredo pela sua loucura prova que essa mulher amava e ama Vossa Alteza com elevação, com aquela ânsia de martírio e com aquele pudor anti-exibicionista que é o sintoma do verdadeiro amor, do amor que se oculta, que não se fala, que sofre em silêncio.

     “E como se pode explicar que Gina ou Carmen, depois de ter praticado esse heroísmo – viessem alardeá-lo?”

     - E que conclusão tiras tu de tudo isso? Perguntou o príncipe.

     - Tiro a conclusão, Alteza, de que quem tentou suicidar-se foi…

 

* * * * *


 

FALANDO DE REINALDO FERREIRA...

Senhor duma prodigiosa imaginação, tão vasta e surpreendente que é bem provável não ter havido outra igual no nosso jornalismo, durante uma década o seu fulgurante talento encheu de estupefacção quantos o liam. E não só em Portugal mas também em Espanha, onde trabalhou algum tempo.

Em tudo precoce, quer na vida aventurosa quer na sua arte, Reinaldo Ferreira conheceu um espantoso êxito antes dos trinta anos. O seu nome tornara-se rapidamente célebre e o seu pseudónimo “Repórter X” mais famoso ainda. Falava-se dos seus triunfos profissionais com o mesmo tom que se utiliza para evocar actos singulares de figuras lendárias.

Mas no meio de toda esta ebriedade, uma mulher que não devemos nem podemos condenar sem conhecermos a sua verdade, que ela própria talvez não soubesse esclarecer bem, empurrou-o involuntariamente para um abismo, sem ser essa evidentemente a sua intenção.

Ansioso de olvido, ele escolhera, para curar o espírito doente, o pior de todos os remédios, aquele que lhe adoeceria o corpo também. Foi uma derrocada total. E Reinaldo, que tanto desejava esquecer, ficou esquecido ainda em vida. A Morte, talvez apiedada, apressou-se a levá-lo com a mesma prematuridade com que tudo florescera na sua existência"

 

(Extracto de uma carta de 7/10/1973 de Ferreira de Castro para Natália Correia.)

 

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A todos os nossos leitores, amigos e colaboradores endereçamos votos de Bom Natal e de um mais Feliz Ano Novo - bem melhor que este pandémico 2020.

 


 


 




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1 comentário:

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