📖 CONCURSO DE CONTOS 🖋
"UM CASO POLICIAL NO NATAL"
O “Blogue RO”... Apresenta:
📽 16.º
Classificado
Amem-se uns aos Outros
Autor: Inspetor Moscardo
O espírito da paz entrara no íntimo de toda a gente. Era a véspera de Natal.
Filipe relera um versículo bíblico: “Amem-se uns aos outros. Como eu os
amei”.
Tão longe, se encontravam as coisas do mundo, do conteúdo, desse mandamento.
Pensando nisso, uma destruidora amargura espalhou-se dentro de si.
As adversidades ocorridas pela vida, saltaram do fosso das masmorras do
alheamento, e cercaram-no ali, dentro de sua casa, a casa que ele recuperara
com dificuldades, e dentro da qual esperava os seus familiares para a consoada.
Solteiro, no ano que passara, subjugara-o um agreste isolamento, uma
sensação de incómodo constante, de imparidade sombria.
Uma amiga dissera-lhe:
– És a perfeita natureza morta, da imperfeita solidão viva.
Respondeu-lhe algo, que não desse a entender, precisamente, que não tinha
entendido.
Anos mais tarde, soube que afinal, a amiga queria mesmo perceber, é que ele,
não tinha percebido.
Neste Natal convidara para a consoada, os irmãos e os sobrinhos.
Armara a árvore com os presentes à volta, e uma serpentina de pequenas
lâmpadas, a acender e a apagar, ao redor da copa.
Aguardava que chegassem, e tencionava depois da ceia, irem à missa do galo.
O seu telemóvel tocou, uma videochamada, era o seu irmão mais novo.
Perguntou-lhe como se encontrava de saúde, e se, se andava a sair bem, na
empresa onde trabalhava em informática. Do melhor respondeu-lhe. Na chamada IA,
estou entre os primeiros.
E disse-lhe o irmão que a esposa, os meninos e ele próprio, encontravam-se
também bem – apontou para eles a câmara do telemóvel, – mas lamentavelmente,
não poderiam passar a consoada com ele, porque os sogros fizeram finca pé, e
quase os “obrigaram” a passar a noite com eles.
Notando a sua deceção, disse-lhe o irmão que ficariam para a passagem de
ano. Que contasse com eles para o ano novo.
Não conseguira disfarçar a seu desapontamento.
Ligou a televisão. Iria dar umas boas gargalhadas a ver o filme “Sozinho em
Casa”. Distraído como sempre, não reparara que o filme desta vez, não fazia
parte da programação natalícia.
Entretanto ligou o seu outro irmão, e também, por um motivo de última hora,
não poderia também estar presente.
Uma angústia sem explicação, se alastrou pelo âmago da sua alma. E
decidiu-se a beber qualquer coisa.
Passaria a noite sozinho.
Pegou na bíblia, folheou-a e abriu-a ao acaso. Leu:
– “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos
ofenderam”.
Lembrou-se então do senhor regedor, com quem tivera alguns litígios.
Tinha ele praticamente toda família emigrada. Em França uns, Suíça e
Luxemburgo outros, e só vinham à mãe Pátria, de vacances no verão.
Provavelmente estaria nas mesmas circunstâncias.
(O regedor era pouco religioso. Não frequentavam a missa.)
Reparou na fantasia que comprara de Pai Natal, arrumada sobre o sofá e que
tencionara vestir, para a festa.
E pensou que mesmo sem celebração, iria vesti-la para surpreender o regedor,
com uma garrafa de champanhe, e remirem-se mutuamente das contendas antigas.
Aproximava-se a meia-noite.
Vestiu a fantasia de Pai Natal. As ruas da cidade estavam iluminadas. Saiu
de casa.
Ao aproximar-se da casa do regedor, viu por uma janela que havia luz na
sala. Bem, ainda não se deitara. Bateu à porta. O regedor surgiu à janela, para
ver quem o visitava.
– É pá, quem és tu, vestido dessa maneira, que apareces a esta hora, sem
assistires à missa do galo, e vens interromper a construção do presépio, que é
a minha companhia na consoada solitária?
– Sou o Filipe. Trabalho no Centro Geral de Computação.
– A sério?
– A sério. Também me calhou, desta vez, essa velhaca solidão. Vamos beber à
nossa saúde? – perguntou Filipe.
– Se estás com essa disposição, vamos a isso.
O regedor abriu a porta e saudou-o:
– Bem-vindo, entra. Lembro-me que andámos juntos na escola. Fomos dos mais
comtemplados, com vastas reguadas, por parte do professor da primária.
– É verdade eramos burros, a aprender a tabuada. Lembras-te quando já
adultos, da vez em que me arrancaste um marco, de uma propriedade, e o atiraste
para dentro de um poço?
– Não fui eu Filipe. Como te disse na altura, contratara um novo tratorista,
pouco conhecedor das extremas da fazenda, com a manobra de voltar para um novo
sulco, arrancou o marco com a charrua, e com medo de ser despedido, escondeu-o
no poço.
– É verdade, coisas do diabo.
– Bebamos pois. Enterremos o mau passado. Brindemos ao bom futuro.
Ergueram as duas taças. Tchim… Tchim…
– O que me mói mesmo, – disse o regedor – foi a minha mulher, a minha deusa,
ter-me deixado. Ainda sinto a falta dela.
– E, porque não arranjaste outra?
– Eu tentei meu amigo. Mas algumas diziam que não queriam artigo de refugo.
E uma disse, que sofrera um ghosting, e que por causa disso, estava com a sua
autoestima lesada, e que não voltaria a ter uma nova relação, sem ficar
completamente esclarecida, sobre o que a levara a começar, e o que a levara a
terminar.
– Será que entendeste, o que era essa coisa do ghosting? – perguntou Filipe
– São termos modernos da internet, dos sites de encontros, dates.
– Deitam-se?
– Às tantas. Mas não podes asnear. Tens de ir em frente, encerrares-te numa
“torre de marfim” não vai resolver.
– Sabes, amigo, que ela me fugiu, pela altura em que a tua namorada se
suicidou? Um revés que nos tocou aos dois, embora diferentes no particular, que
coube a cada um.
Filipe lembrou-se do amor que tivera pela namorada, amiga de infância,
vizinha, o seu suicídio lhe provocara uma dor, e um receio de voltar a amar.
– Não penses mais nisso, disse o regedor, ela era simpática. Nalguns casos
se poderia considerar até demasiado.
– Que dizeis regedor, brincais comigo, com uma coisa tão séria e dolorosa? –
Perguntou Filipe, a usar involuntariamente o verbo no imperativo.
O regedor não respondeu, mas não foi o silêncio, foi o sorriso de escárnio,
que fez Filipe num gesto repentino, partir-lhe com força a garrafa na cabeça.
O corpo caiu, o sangue começou a correr sobre a alcatifa.
Viu a pulsação. Sem pulso. Estava morto.
Não era sua intenção, obter esse resultado.
O pânico tomou conta de si. Que fazer?
Encenar talvez um acidente, um assalto que correra mal, e desaparecer o mais
depressa possível, sem deixar rasto.
Olhou para o relógio a missa do galo terminara.
Atirou os objetos, que estavam em cima dos móveis pelo chão. Abriu e
despejou algumas gavetas. Deu sumiço na garrafa.
Despiu a fantasia.
Respirou fundo. Limpava o suor, preparava-se para sair, quando bateram à
porta.
Várias vozes diziam do lado de fora:
– Abra, a luz está acesa, queremos desejar-lhe boas festas.