🧐 🕵️ Primórdios da Problemística Policiária
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*** 18.ª Edição! 🧐 📖
PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA
PORTUGUESA
POR: DOMINGOS CABRAL
PRIMÓRDIOS DA
PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
(CONTINUAÇÃO)
CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”
***
“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 16
O COLAR DAS TREZENTAS PÉROLAS
A fantasia está para o
nosso equilíbrio espiritual
como a lagosta para o estômago do dispectivo. E a maior das agruras que a
fantasia, quando estala o seu envolucro, derrama sobre a nossa alma, é, sem
dúvida, a do desengano. O modelo mais acabado das desilusões que a fantasia nos
proporciona a diário baseia-se na grafia mental dos entes, cuja existência e
cujo nome nos invadem a imaginação. Há quanto tempo ouvia eu falar de S. Tomás
S…, das suas aventuras galantes, do seu harém cosmopolita, do seu talento de
bem trajar, de bem parecer, da sua ditadura na elegância e nas frases de
espírito ? E fantasiava-o um pouco Eça, um pouco Brulé, com mistério e atitudes
de “Vencido da Vida” e guarda-roupa importado de Regent Street.
Mas ontem conheci-o… Que desengano! Um
sobretudo, modesto, umas polainas de cor indefinida, um chapéu mole que já não
se usa; uma dentadura postiça, abalada ao sopro de cada palavra; um monóculo de
aro e fitilho negro; uma calva sem disfarce, desnudando-se a cada cumprimento;
e para cúmulo, o desmazelo de uma barba branca de dois dias.
Quem m’o indicou, adivinhando, através da careta
que me crispára o rosto, a desilusão sofrida, apressou-se a dizer-me:
- Não julgues tu que o Tomaz, quando andava
na actividade elegante e brincava com os corações das bailarinas de S. Carlos,
como os jongleurs brincam com os
archotes incendiados, era assim, como tu acabas de o ver. Não! Este
amolecimento, esta abdicação, este desprezo evidente por si próprio data de há
pouco tempo. De 1919, se não estou em erro… A causa? Tens interesse em ouvir
uma história em que a tua fantasia pode meter á vontade uns bruxedos ou
feitiçarias? Então escuta:
“Lembras-te de Wanda Kasensko, a bailarina
russa que ia fazendo aos D. Juans de Lisboa o que Nero fez às casas de Roma?
Wanda Kasensko veio até cá, como primeira figura de uma troupe celebre de
bailados, chefiada pelo príncipe R… O seu físico acumulava tão inverosímeis
perfeições de beleza que entontecia. Alta, majestosa; o corpo de Venus, com
ambos os braços – e que braços; um triângulo facial que parecia feito de regua;
uns olhos negros, indianos, umas pestanas doiradas, uma boca que era um
comprimido de beijos; e para mais, inteligente, artista por inspiração divina;
e aureolada por todas as lendas… Que tinha arruinado o rei das caixas de
fósforos, nos Estados Unidos; que o kronpriz
se quizera suicidar por sua causa; que um monarca asiatico lhe oferecera um fauteuil, na primeira fila, do seu
palácio real… Enfim, o bastante para excitar a vaidade de todos os
“portuguesinhos valentes”.
“Ao princípio a sua corte foi numerosa. O
camarim de S. Carlos estava sempre ao “grand complet”… Mas a frieza com que
eram acolhidos provocou a deserção em massa dos seus admiradores. Nas últimas
semanas da sua estadia em Portugal apenas isto dos pretendentes se conservavam,
heroicamente firmas no seu posto: o rico fazendeiro de Cabo Verde, Marcial de
Abreu, avelhacado e silencioso; o poeta, futurista e esfomeado, Albano Real,
que corava na presença de Wanda, incapaz de dar á sua tenacidade o vigor de uma
iniciativa e que passava todo o tempo a esconder os punhos sujíssimos da
camisa; e o Tomaz, que tu acabas de conhecer…
“Dos trez, o que tinha uma decidida vantagem
sobre os rivaes, era Tomaz. Dotado de uma viveza de espírito superior ao poeta
Albano; menos rico, mas muito menos
sovina do que o roceiro Marcial – ele podia fazer capitular a alma-tanque
da russa, insinuando-se, com a finura da sua inteligência e com a sedução dos
seus presentes.
“Porém, contra todas as profetisações,
contra a manifesta fraqueza que Wanda exibia ante o seu assalto – a vitória
retardava. Tomaz impacientava-se. Naquele bacarat amoroso arriscara a vaidade,
a fama, e até um sentimento inédito de ternura. E um belo dia quis fazer a
parada suprema. Vendeu uma quinta que possuía lá para o Douro e encomendou ao
seu joalheiro de Paris um colar que, sendo digno da imperatriz das Russias – o
fosse também da bailarina. Calcula tu o que seriam umas trezentas pérolas, das
melhores que o Japão exporta, numa enfiada de quasi dois metros… Quarenta mil
libras, creio que custou a jóia…
“O colar teve honras de segredo de Estado.
Veio de Paris a Lisboa, guardado por dois detectives. Restava agora teatralizar
a entrega – e esta foi solenemente realizada, no camarim de Wanda, na presença
de Marcial, de Albano e do Boris Kasensko, irmão, secretário e talvez
explorador das venturas financeiras da bailarina. Quando o colar surgiu sobre a
seda azul do estojo, como uma constelação de estrelas no céu límpido de Nice –
Wanda cambaleou; os rivaes de Tomaz empalideceram e Boris corou até ao rubro.
“O coração de Tomaz fez vários looping-the-llop” dentro do peito. Ante-gosava já a vitoria. E á saída, perguntou
ao ouvido da bailarina:
- “Cede finalmente á ceia que eu lhe esmolo
em vão, há tantos mezes ?
- E ela, perturbada, como uma noiva,
segredou-lhe:
- Hoje, não! Amanhã…
– Jura?
– Juro! Como podia eu mentir a um homem como
você?
“Tomaz não dormiu aquela noite! Parecia um colegial
a preparar-se para uma matinée do
Coliseu… E quando, às oito horas, se burrufava com os últimos perfumes, o
creado trouxe-lhe um embrulho e uma carta que o chassuer do Hotel de Inglaterra acabava de deixar. Rasgou o
envelope e, aparvalhado, leu pouco mais ou menos o seguinte texto: “Tudo posso
perdoar a um homem, menos o insulto de uma troça. Você acabaria talvez por
conquistar-me, sem presentes. Mas a pretenção de me burlar, de me vexar com uma
esperteza ridícula, afasta-o para sempre da minha vida. O colar que me
ofereceu, dizendo que fôra preparado especialmente para mim, no melhor
joalheiro da Rue de La Paix
é uma falsificação grosseira. Deve ter custado, na sucursal do Krept em Lisboa,
algumas dezenas de escudos apenas. Adeus para sempre da… - Wanda Kasensko.”
“Tomaz deixou de pensar, de comer durante 24
horas e deixaria também de respirar se fosse possível a asfixia, por
esquecimento. Essa apatia foi-lhe fatal. Quando despertou e quis reagir, já era
tarde. Wanda abandonára a troupe sem dizer água-vai ao director e partira no
Sud, para ponto desconhecido… Atontado, temendo enlouquecer, telegrafou para
Paris; encarregou os amigos de processar os joalheiros. Os joalheiros provaram
facilmente que o colar saíra perfeito das suas oficinas. Os detectives que
tinham sido seus portadores estavam fora de toda a suspeita. Dirigiu-se então
ao Lemos da Silva, o perito que apreciara o colar à sua chegada a Lisboa.
- Não há dúvida! afirmou o Lemos. Este
colar é uma imitação grosseira!
- Mas tu garantiste-me o seu valor quando
eu t’o trouxe aqui, há semanas.
- Garanti – porque esse era… verdadeiro.
- Nesse caso existem dois colares?
- Absolutamente…
«Era caso para perturbar o cérebro mais
sólido. E Tomaz quis fazer averiguações por sua conta. Foi ao hotel de Wanda e
subornou os empregados: no dia seguinte à oferta do colar a bailarina tinha
sido visitada, nos seus aposentos, pelo roceiro Marcial, pelo irmão Bories e
pelo poeta Albano. Tomaz começou a acreditar que houvera escamoteação e troca
de colares nos próprios aposentos de Wanda, no dia da carta. Mas quem seria o
escamoteador? O objectivo parecia-lhe claro. O objectivo fôra o roubo…
“Mas este convencimento durou pouco. Uma
manhã, o correio trouxe-lhe uma encomenda postal, registada. Abriu-a e ante os
seus olhos pasmados surgiu um colar de pérolas. Nenhuma explicação o
acompanhava. Correu com o estojo ao Lemos da Silva. Ele examinou as pérolas,
limpou-as, mordeu-as:
- Este colar é verdadeiro! - afirmou. Este
colar é o primeiro que tu me mostraste.
“O mistério complicou-se, adensou-se,
tornou-se opaco. Provara-se que o móbil da troca dos colares não fôra o roubo –
que móbil inspirara o escamoteador? E quem seria esse escamoteador? Tomaz só o
soube um ano depois, quando a “Comedia” deu a conhecer a notícia do casamento
de Wanda…
- E quem casou com Wanda? – perguntei.
- Com o escamoteador do colar.
- E quem era o escamoteador do colar?
- Era ………
Raciocinem,
releiam as linhas em itálico, vejam a quem podia interessar a escamoteação do
colar.
* *
* * *
FALANDO DE REINALDO FERREIRA...
“Mais do que “Repórter”, foi Reinaldo Ferreira um admirável novelista de
ficção como se nele se reunissem um Jack London, com todo o ímpeto das suas
aventuras, e um Edgard Wallace com toda a técnica do surpreendente. As
necessidades do dia a dia obrigavam o novelista – tão bom como os melhores do
mundo - a envergar o “colete de forças do “repórter”.
A nossa indústria editorial era demasiado estreita para que nela coubesse e
se expandisse livremente um escritor da sua envergadura.
No entanto, sempre que podia, o novelista dissimulado em repórter punha de parte
o seu “travesti” e dava-nos novelas encantadoras como Mataram, o Duque, Preto e
Branco, Cinco Mil Francos por Mês, em que, a par do imaginoso, brilhava o
observador muito humano e até moralista. O seu forte, porém, eram os temas
policiais e de aventuras. Um Edgar Wallace, um Van Dine, um Mayn Reid não
desdenhariam assinar algumas das suas novelas. Se tivesse vivido em Inglaterra
ou nos Estados Unidos teria morrido milionário (...) para nos dar (...) obras
de maior equilíbrio e fôlego, para as quais não lhe faltavam recursos de
inteligência.”
(Extracto do prefácio de Mário Domingues publicado no livro “As Memórias
Extraordinárias do Major Calafaia, de Reinaldo Ferreira, editado em 1945 pela
“Vida Mundial Editora, Lda.).
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Último retrato de Reinaldo fotografado em Fevereiro de 1935, na redacção do X. Col IFC
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»»» Publica-se aos dias 15 e último de cada mês! «««