📖 CONCURSO DE CONTOS 🖋
"UM CASO POLICIAL NO NATAL"
O “Blogue RO”... Apresenta:
📽 EXTRA-CONCURSO
SONHOS DE NATAL
Escreveu: Madame Eclética
Amélia era uma miúda estruturalmente alegre e desempoeirada, uma morenaça muito
gira e dada à brincadeira. Espalhava o seu charme pelas redes sociais, onde foi
conquistando seguidores atrás de seguidores sem temer que aquela sua aventura
pelo mundo virtual viesse a degenerar numa qualquer invasão indesejada da sua
vida privada. Até que um dia começou a ser assediada por um grupo de tarados
que se autointitulavam “Sonhos de Natal”. Primeiro, começaram com uns piropos
pueris e aparentemente inocentes, para depois se insinuarem com uns convites de
cariz sexual, primeiro um pouco brejeiros e mais tarde ordinários e
pornográficos, em qualquer das três contas por ela geridas nas redes sociais.
Mas de nada valeu a sua pronta e forte reação contra aquelas atitudes nem o
subsequente bloqueio das indesejáveis criaturas.
Os contactos
passaram a ser feitos através do telemóvel e do telefone de rede fixa, sem que
se percebesse como aqueles tarados conseguiram ter acesso aos respetivos
números. Amélia deixou de atender as chamadas de números desconhecidos ou
anónimos e as mensagens escritas passaram a ser a ferramenta de assédio, com
uma catadupa de insultos e ameaças. Face a este comportamento, ela denunciou-os
à polícia. Mas ao contrário do que se esperava, o resultado foi desastroso. É
verdade que os telefonemas, as mensagens e os comentários nas redes sociais
terminaram, mas eles passaram a esperá-la, em grupo, à porta de casa e do
emprego, limitando-se a sorrir e a soltar frases de cariz sexual, como “és boa
com’ó milho, meu pintainho”, “comia-te toda, minha pombinha”, “lambia-te dos
pés à cabeça, meu chupa-chupa de chocolate.”
Amélia deixou de
trabalhar, enfiou-se em casa, não saía com ninguém e mal comia. As noites eram
muitas vezes passadas em claro ou assombrada por pesadelos, quando conseguia
pregar olho, acordando nessas alturas em sobressalto e encharcada em suor,
tremendo que nem varas verdes. De manhã, mais ou menos à hora em que
habitualmente saía para o emprego, quando olhava pela janela, encoberta pelas
persianas de seu quarto, lá estavam os “Sonhos de Natal”. Invariavelmente, eles
ficavam estacionados na rua defronte da casa dela, encostados à parede de olhos
fixos na sua janela. E só desmobilizavam quando a polícia chegava junto deles,
a seu pedido. Mas mal os agentes voltavam costas, lá vinham de novo os rapazes,
como se não tivessem mais nada que fazer na vida a não ser incomodar a
rapariga, que não sabia como agir.
Após frequentes
apelos da mãe, Amélia abandonou de vez as redes sociais, onde era massacrada
com frequentes provocações de teor sexual por amigos dos “Sonhos de Natal”. E
aos poucos voltou a sair de casa, sempre na companhia de uma prima, um pouco
mais nova, para se distrair em locais fora da cidade ou cumprir as consultas
técnicas especializadas a que fora aconselhada. Nos intervalos em que a polícia
punha os rapazes com dono, saíam ambas de casa e corriam para o lado oposto ao
sítio por onde eles haviam fugido, diretas à estação de metro do Jardim do
Morro. Aí, encobertas pela cobertura-abrigo da estação, esperavam calmamente
até chegar as carruagens que as levavam a São Bento ou a Santo Ovídio. De São
Bento rumavam a Espinho ou a Aveiro; de Santo Ovídio o destino era sempre um
prédio azul da rua Soares dos Reis.
No terceiro andar
daquele velho prédio da rua Soares dos Reis, dava consultas de psicologia um
jovem muito bem-parecido, recentemente formado, com fama de ser muito
competente. Num desses dias de consulta, a priminha da Amélia ficou na sala de
espera, como sempre acontecia, enquanto ela entrava no consultório do Dr. Paulo
Mamede. Cabelo loiro comprido, com melenas caindo sobre as sobrancelhas
espessas que encimam os seus brilhantes olhos verdes, um sorriso permanente nos
lábios carnudos bem desenhados e uma voz cava e melodiosa. O sol entrava pelas
altas janelas do consultório, dando ainda mais brilho ao rosto moreno do
psicólogo, que esperava sentado a sua paciente, com as mãos pousadas sobre o
tampo da secretária pejada de livros. Amélia avançou até ele, que lhe apontou a
cadeira em sua frente, onde se sentou.
As pernas de Amélia
tremiam, as mãos suavam e o rosto ruborizava, o que sempre acontecia nestas
consultas. Esta era a terceira vez que o psicólogo a ouvia e ela já não sentia
que conversava com um técnico de saúde. A conversa desta feita foi sobre
música, sobre os seus gostos musicais mais propriamente. E ficou a saber que
ele tinha mais uma coisa em comum com ela. Gostava de jazz! Tal como ela, tinha
um especial prazer em ouvir Miles Davis, Bille Holliday, Chet Baker e Ella
Fitzgerald, nomes maiores deste género musical criado no início do século XX
pela comunidade negra de Nova Orleans. Disse ele que era um gosto herdado de
seu pai e que tinha uma preciosa discoteca de vinil composta por temas
jazzísticos, acabando por convidá-la a ouvi-los em sua casa, numa tarde em que
não tivesse consultas, nomeadamente a um sábado.
O coração de Amélia
começou a bater tão forte e tão descompassadamente, que se sentiu desfalecer. E
o pior foi ainda quando o psicólogo disse que nessa noite havia um concerto
natalício de Jazz no Convento Corpus Christi. Ele ainda não tinha a certeza que
pudesse ir, mas prometeu que faria todos os possíveis por comparecer. A
consulta, que mais pareceu uma conversa entre amigos, passou depois por outros
temas também do agrado de ambos. Falaram de cinema, de artes plásticas e
teatro, concluindo ambos que estiveram algumas vezes no mesmo dia e no mesmo
lugar, a assistir ao mesmo filme, a visitar o mesmo museu, a ver a mesma peça.
No final, imediatamente antes das despedidas, ele recordou o concerto de logo à
noite. E concluiu, dizendo que o receio de se confrontar com os tais “Sonhos de
Natal” não podia condicionar a sua vida.
Quando a prima
Susana perguntou como havia corrido a consulta, Amélia só conseguiu balbuciar
“correu bem”. O seu peito rebentava de felicidade, mas ela não podia confessar
esse sentimento. E muito menos dizer de quem era a responsabilidade por aquele
seu estado de espírito. Era a terceira vez que consultava o psicólogo Paulo
Mamede, sempre por causa dos “Sonhos de Natal”, e pela primeira vez percebeu
que não lhe era indiferente como mulher. No caminho de regresso a casa, a
Susana perguntou-lhe por diversas o que se passava com ela, tal era o seu
estado de espírito. E quando a prima perguntou se queria que ela lhe fizesse
companhia até à hora de deitar, o que acontecia com frequência, sobretudo
depois das consultas ao psicólogo, Amélia respondeu de supetão: “Não, deixa
estar, não vale a pena. Hoje sinto-me muito bem”.
Amélia não se sentia
apenas muito bem naquele momento. Na verdade, ela nunca se havia sentido alguma
vez melhor desde que se conhecia como mulher. Aquele homem tinha tudo o que ela
imaginara como seria o seu futuro companheiro de vida, nas noites febris de
desejo da adolescência. Havia algo nele que descontrolava os seus sentidos, que
a deixava perdida em sonhos que a remetiam para fantasiosas experiências
sexuais. E agora só pensava na hora de o voltar a ver, logo mais, no Convento
de Corpus Christi, embalada por aquela louca paixão ao som de algumas das suas
músicas de eleição, ao ritmo de jazz.
Quando chegou ao
Convento Corpus Christi, atravessou o largo portão que dá acesso ao pátio do
monumento na esperança de encontrar a qualquer momento o homem por quem se
apaixonara. A entrada era livre, mas não era permitido o acesso ao local do
concerto após a hora marcada para o seu início e tinha como condição a
permanência obrigatória no espaço até ao final do espetáculo. Amélia olhou em
redor e não viu Paulo. Aguardou mais um pouco e quando chegou ao limiar da hora
do espetáculo resolveu entrar. A sala já estava repleta de pessoas e só
conseguiu lugar na última fila da plateia. Olhou as nucas que se perfilavam na
sua frente e em nenhuma delas conseguiu vislumbrar indícios da cabeça do “seu”
Paulo. Uma delas tinha um cabelo loiro com algumas semelhanças, mas as dúvidas
dissiparam-se quando se posicionou de perfil.
A pessoa que estava
ao lado do loiro que a confundiu, voltou-se para este e… Amélia entrou em
estado de choque. Era um dos “Sonhos de Natal”! E ao lado desse estava outro. E
mais outro. A rapariga ergueu-se de um salto e correu para a porta de saída da
sala, que abriu a custo. Um flash de luz encadeou-a. E à frente daquele clarão
de luz intenso, conseguiu vislumbrar um grupo de jovens rapazes de armas
apontadas para si, gritando. “Atenção! Preparar! Disparar!” Amélia soltou um
grito aterrador, ao mesmo tempo que correu desenfreadamente em direção ao
portão de saída do Convento. “Corta! Corta! Corta! Mas quem é que deixou passar
esta maluca?!” – berrou, através de um megafone, um homem de chapéu de pala,
que estava sentado numa cadeira de realizador, que tinha impressa na lona do
encosto… “Sonhos de Natal” – o título do filme em rodagem…