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PRIMÓRDIOS DA PROBLEMÍSTICA POLICIÁRIA PORTUGUESA
(CONTINUAÇÃO)
CICLO REINALDO FERREIRA – “REPÓRTER X”
***
“OS 50 CONTOS MISTERIOSOS” N.º 19
A SOMBRA DE PINA MANIQUEEm 1787 Belem não dispunha ainda outro fornecedor de luz que não fosse a lua – quando o céu se apresentava generoso e diafano. Naquela noite de Maio o luar, atapetando de platina a calçada, focava, com um projector eléctrico, uma janela do “Café Central”. Por detrás da janela espreitava a rua deserta um rosto moreno e sêco. Tão colado estava, que o seu bafo, alastrando uma mancha opaca, impedia-o de vêr. E ele, de quando em vez, espalmava a mão e com frenezim, limpava os vidros embaciados.
Modesto era o quarto que o enigmático estrangeiro alugara no “Café Central”. Mal conseguia arrumar, amontoando-os, os baús e as arcas que trouxera de Londres. Lá em baixo, na loja, a algazarra da clientela nocturna, as disputas dos jogadores e dos beberrões, as modinhas cantaroladas à viola, prolongavam-se até de manhã, não oferecendo o menos socego a quem, como ele, necessitava silencio e solidão… Mas convinha-lhe o sítio, afastado de Lisboa, fora das zonas espiadas pelos esbirros do Intendente, e frequentado apenas pelos frades noctâmbulos, pelos bohemios perseguidos, pelos aventureiros e pelos marítimos que, por costume e por prudência, não bisbilhotavam a vida alheia.
A angustia de esperar, desequilibrara os nervos do misterioso estrangeiro… Ora dilatava os olhos – aqueles olhos de magnético fluido que tantos estragos tinha causado – na ânsia de vêr para além da casaria; ora se deitava sobre o leito, fechando as pálpebras, para melhor manobrar a mecânica misteriosa do seu cérebo.
Perto da meia, tamborilaram discretamente à porta. Ergueu-se, desconfiado, e perguntou quem era. Uma vozita feminina respondeu em italiano:
- Abre! Sou eu.
- Lorenza!
A porta abriu-se e fechou-se rápida. Entrára no quarto uma cabeça loura, que refulgia, emblocada no capote negro.
- Lorenza! Por que te demoraste tanto? Não sabias com que aflições eu te aguardava?
A dama loura, sem responder, deixou-se cair numa cadeira e, cerrando os olhos, quiz, antes de responder, ritmar a respiração. E depois, refeita da fadiga, exclamou:
- Deixa-me! Se tu soubesses!
- Foste seguida?
- Fui. Desde a Junqueira.
- E por quem? Mas não te assustes! Consegui trocar-lhe as voltas…
- E o grego? Teve de fugir esta manhã… Foi denunciado. Mas o sócio tinha a carta que ele deixou para ti.
Os dedos da italiana introduziram-se, suaves, pelo decote assetinado e branco – e pinçaram, de entre os seios, um rectângulo de papel. Ele arrancou-lh’o das mãos, como um avaro: - mas logo que os seus olhos roçavam pela carta, os lábios crisparam-se-lhe:
Que imprudência e que imbecil!
- ?
- O grego escreveu no envelope o meu nome…
A loura foi certificar-se. Era verdade. Em letra miúda como missanga lia-se o nome do estrangeiro: “José Balsamo”… E entre parêntesis: “Conde de Cagilostro…”
*
Deitaram-se… José Balsamo, agitava-se na cama, tentando em vão envolver-se no piedoso esquecimento do sono. A sua privilegiada sensibilidade fazia pressentir a catástrofe… Escorraçado de Berlim e de Londres, ameaçado de morte em Paris – ele viera a Lisboa desfechar o golpe de maior audácia de toda a sua vida aventureira. Burlando a maçonaria engendrara um “complot” internacional que devia empoleirá-lo de novo nos astros das suas ambições. Mas mal chegara sentira-se como que o íman de um ódio… Pina Manique assustava-o, desiquilibrava-o, assoprava-lhe o castelo de cartas das suas magníficas embustices. A matilha dos seus esbirros, usando de todos os disfarces, recrutados em todas as classes, produzia-lhe asfixia. Viera o dinheiro que ele aguardava do cúmplice – mas aquela imprudência de o deixar sobrescritado em seu nome, em mãos de terceiros afligia-o, numa covardia inédita para ele.
Era já madrugada quando conseguiu adormecer. Mas nem mesmo assim socegou… Convulsionou-se em pesadelos scenografados sempre pelas masmorras e pelos patíbulos… Quiz acordar, libertar-se daquele inferno… E num esforço enorme, o seu subconsciente começou a receber estranhas impressões… De pálpebras semi-cerradas via vagamente o quarto… E ouviu uma voz abafada, soletrando o seu nome; e depois, fina como uma agulha, picou-lhe o cérebro uma exclamação de máxima surpreza.
Estaria ainda a sonhar? Num rompante conseguia abrir, por completo, os olhos. Os batentes das janelas estavam meio cerrados… A escuridão era apenas rasgada por uma estreita flecha de luar… E viu ainda o burel do frade desaparecer pela porta.
No primeiro momento não conseguiu que o corpo obedecesse à sua vontade. Mas ao soerguer-se, todas as dúvidas se dissiparam. Não era sonho, não! A porta, que ele fechára, estava aberta! A carta que ele deixára sobre uma arca, estava no chão… Portanto, um frade invadira o quarto; um frade lêra, na penumbra, o endereço da carta, escrita em missanga; e tão grande fôra o pavor que o acometera ao descobrir quem era o estrangeiro do «Café Central» que, não pudera conter-se e pronunciara, embora em voz abafada, o seu nome. E fora a voz do frade que, trespassando a muralha de sono, viera espicaçá-lo e acordá-lo.
José Balsamo sentiu-se descoberto; José Balsamo sentiu, nítido, o perigo que girava à sua volta. Mas contra o que poderia esperar, estava calmo, pronto a agir com firmeza e rapidez.
*
Vestiu-se com a meticulosidade de quem vai iniciar o seu dia e desceu a escada que conduzia ao café. Mas, antes de entrar na baíuca, indagou ao creado:
- Saiu alguém?
- Ninguém… É noite morta, a de hoje. Desde a meia noite que não me chamam para abrir a porta. Cagilostro avançou para o café. Estava pouca gente. Uns marinheiros louros que escabeceavam á volta de uns copos vazios; um poeta de barba por fazer que sonhava, olheirento e triste, frente a um copo de genebra; dois judeus de barbicha, bofurinheiros nos arredores, que esperavam o dia para recomeçar a caminhada – e, em mesas muito distanciadas, dois frades – os únicos que beberricavam, naquela noite, no “Café Central” de Belem. Um deles, que estava de pernas estendidas sob a mesa e o tronco encostado a uma coluna, era muito moço ainda, e tinha acavalado ao nariz romano e perfeito, uns óculos de latão. Atravez dos cristaes grossísimos viam-se uns olhos azues, bogalhudos, míopes, que transparentavam sensualidade.
O outro, espadaudo e cilíndrico tórax, era bastante mais velho do que o primeiro. Umas farripas prateadas marginavam a calva natural. Sobre a mesa onde se arregimentavam canecas de barro, pousára um cacête respeitável.
Nenhum deles dera pelo José Balsamo, que os observava, por detraz do balcão. Visto que ninguém saíra do café – um daqueles dois frades era o espia que descobrira o segredo… Fôra um dos dos dois que seguira na rua a sua amante Lorenza, e um dos dois ousara invadir-lhe o quarto e ler os caracteres minúsculos com que o grego lhe subrescritára a carta. Mas qual dos dois?
Todos os recursos da sua inteligência viva e maquiavélica, rodaram, numa actividade furiosa… Era preciso descobrir o espia – para lhe inutilisar a obra. E quando meia hora depois Cagilostro voltou ao quarto, levava já, dentro do seu espírito, uma convicção. Daqueles dois frades só um poderia ter praticado a proeza – e esse era…
Racicionem… Releiam as palavras em itálico… Qual dos dois frades podia ter lido, no quarto penumbroso, a carta dirigida a José Balsamo?
* * * * *
Nota: Foi mantida, nesta reprodução, a ortografia original.
OBRAS DE REINALDO FERREIRA
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Morreu o Duque
O Presidente da República
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A Rainha sem Nome
As Azagaias da Princesa Mulata
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O Homem da Cabeleira Branca
O Fantasma do Nicola
Os Russos da Minha Pensão
O Homem que Perdeu o Cérebro
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Amarelo e Vermelho
O Segredo dos Reis de Portugal
Estranhas Aventuras do Dr. Z
As Chaves do Paraíso
O Homem que Embalsamou Lenine
O Fantasma Branco
A Pequena Macaísta
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O Jardim das Flores Envenenadas
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O Espia de Bruxelas
O Monstro de Guimarães
A Vida dum Aventureiro
Memórias Extraordinárias do Major Calafaia
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Rita ou Rita?
Vigário Foot-Bal Club
Hipnotismo ao Domicílio
(Continua no próximo número)
DOMINGOS CABRAL DA SILVA |
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A dificuldade deve estar na escolha já que deste senhor é tudo muito bom👏
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